Os crimes patrimoniais no Brasil: entre novas e velhas dinâmicas
A digitalização das finanças, de serviços e do comércio, especialmente impulsionada durante o período pandêmico, contribui com a formação de um ambiente propício ao desenvolvimento de modalidades criminais que exploram vulnerabilidades nesses
segmentos
David Marques*
Coordenador de projetos do Fórum Brasileiro de Segurança Pública e Doutor em Sociologia pela UFSCar
Amanda Lagreca
Pesquisadora do Fórum Brasileiro de Segurança Pública e Mestranda em Administração Pública e Governo pela FGV/EAESP
É possível verificar uma tendência nos registros de crimes patrimoniais no Brasil? Essa questão tem permeado as reflexões sobre os dados nas últimas edições deste Anuário. Na edição de 2019, Guaracy Mingardi analisava a queda no número total de roubos em 2018 questionando: “ladrões de férias?”. Em 2020, quando da análise dos dados do primeiro semestre daquele ano, já impactado pelas medidas de distanciamento social impostas no contexto da pandemia de Covid-19, verificamos a intensificação da redução nos indicadores de roubo entre 2019 e 2020. Agora, ao analisar os dados de 2021, a identificação de tendência de redução nos crimes patrimoniais, sobretudo nos roubos, torna-se ainda mais difícil, tendo em vista a mudança de cenário no que se refere aos efeitos das medidas sanitárias na dinâmica da criminalidade.
Se, em 2019 e 2020, houve variação de -26% nos roubos e furtos de veículos, entre 2020 e 2021 verificamos uma relativa estabilidade, com a oscilação de +0,1% na taxa de roubo e furto por 100 mil veículos, chegando a um total de 334.643 veículos subtraídos em 2021. Embora haja a manutenção do patamar desses registros entre 2020 e 2021, ainda temos 916 veículos roubados ou furtados por dia no Brasil no último ano.
Como sempre, o cenário nacional camufla algumas variações regionais importantes. Dentre os estados que apresentaram crescimento nos indicadores, destacam-se os casos de alguns estados fronteiriços, como Acre (crescimento de 33,8% na taxa entre os dois últimos anos), Mato Grosso (crescimento de 17,5%) e Amapá (crescimento de 16,7% no período). Rondônia, embora tenha apresentado redução de 2,4% na taxa, apresentou um pequeno crescimento nos números absolutos de roubo e furto de veículos. A título de exemplo, representantes das polícias civis do Acre e de Rondônia apontam uma intensificação nessa modalidade criminal, que teria a Bolívia como destino dos veículos subtraídos, principalmente caminhonetes, que seriam trocados por cocaína ou armas do outro lado da fronteira. Também há uma má notícia para São Paulo, que apresentou declínio importante em sua taxa a partir de 2014, tendo como principal marco a chamada “lei dos desmanches”; entre 2020 e 2021, contudo, apresentou aumento de 13% nas taxas, por 100 mil veículos, de roubo e furto.
Entre 2020 e 2021, houve aumento na taxa de roubos e furtos de veículos em oito unidades da federação, sendo os destaques o estado do Maranhão, com aumento de 59,7% e Acre, como já mencionado acima. Em sentido oposto, houve uma queda relevante de -22,4% na taxa de Tocantins, -22% no Rio Grande do Sul e -21,7% no Rio Grande do Norte.
Em outras modalidades de roubos, verificamos um sensível aumento no período aqui analisado: 6,5% nas taxas de roubo a estabelecimento comercial, 4,7% nas taxas de roubo a residência, aumento de 11% nas taxas de roubo a instituição financeira e aumento de 2,4% no roubo de carga. Nota-se, contudo, uma queda de 7,5% nas taxas de roubo a transeunte (no período anterior, 2019-2020, a queda foi de 36,2%).
Entre 2018 e 2021, 3,7 milhões de celulares foram roubados ou furtados no Brasil. Não obstante, nesse período houve uma queda de 22,8% na taxa de roubo e furto de celulares. Já no período mais recente, entre 2020 e 2021, houve uma variação de +1,8% na taxa de roubos e de furtos de celulares por 100 mil habitantes, o que não foi suficiente para que a taxa retornasse aos patamares pré-pandemia. É preciso considerar 2021 como um ano proporcionalmente menos afetado pelas medidas sanitárias de restrição de circulação de pessoas por conta da Covid-19, quando comparado com o ano de 2020. Nesse cenário, foram registrados 847.313 celulares roubados ou furtados, o que equivale a ao menos um (1,6) celular roubado ou furtado por minuto no Brasil em 2021.
As restrições de mobilidade impostas no contexto da pandemia de Covid-19 não impediram o crescimento dos registros de estelionato e parecem ter impulsionado sua prevalência. Os dados aqui apresentados reforçam um fenômeno que vem sendo discutido: estamos vivenciando mudanças significativas nas dinâmicas dos crimes contra o patrimônio, em direção a sua digitalização. A queda de roubos a transeuntes (-7,5%) e o crescimento de roubos e furtos de celulares (1,8%) estão, muito possivelmente, associados a essa dinâmica; o que indica que os dados de roubos e furtos de celulares retratam melhor os crimes cometidos em vias públicas e a sensação de segurança nos ambientes urbanos, como será discutido adiante.
Entre 2018 e 2021, foram registrados 3,1 milhões de casos de estelionato. Em 2021, o número chegou a 1,2 milhão de registros, o que corresponde a um significativo aumento de 179,9% nas taxas, por 100 mil habitantes, em relação a 2018 (entre 2020 e 2021, o aumento foi de 36,3%). Vale ressaltar que não houve queda em nenhuma das UF no período.
O crime de estelionato em meio eletrônico foi tipificado apenas em 27 de maio de 2021, pela Lei n° 14.155/2021. Algumas UF já conseguem realizar sua mensuração. Embora com limitações, como o fato de que nove estados não terem informado os dados, neste primeiro levantamento foi possível identificar que, em 2021, foram registrados 60.590 casos de estelionato por fraude eletrônica.
A análise desses dados de forma associada fortalece a constatação de que o crescimento no número de registros de estelionato tem sido amplamente impulsionado pelas ocorrências em meio digital que, a partir de sua tipificação, poderão ser mais bem monitoradas pelas autoridades estaduais e pelo público geral nos próximos anos, assim como alvo de políticas públicas, a fim de enfrentar o problema que tem acometido cada vez mais a população brasileira.
Como é sabido, os crimes patrimoniais, sobretudo os roubos, têm um efeito muito decisivo sobre a sensação de segurança da população. Em abril de 2022, pesquisa do Datafolha mensurou como a população residente nas cidades de São Paulo e do Rio de Janeiro se sente em relação a alguns tópicos. Quando questionados a respeito da segurança pública, 90% dos entrevistados relataram que têm medo de serem assaltados na rua.
Os dados acima demonstram que, muito embora tenhamos verificado queda nos crimes patrimoniais no período entre 2019 e 2020, com o início da pandemia de Covid-19, essa tendência não se manteve no período mais recente. O ano de 2021 foi marcado pela retomada das atividades, principalmente a partir do avanço da vacinação, e o que as estatísticas nos indicam é que também houve retomada de parte considerável das ocorrências de crimes contra o patrimônio – como falado anteriormente, tivemos leve crescimento de roubo a estabelecimentos comerciais, a residências, roubo a instituições financeiras (com destaque para os casos de maior repercussão, como no “novo cangaço”) e roubo de carga. As taxas, contudo, ainda não se igualam aos patamares anteriores à pandemia de Covid-19. Os crescimentos mais significativos ocorreram no crime de estelionato, com taxas muito acima daquelas vistas em 2018 e 2019, e de estelionato no contexto virtual. Entre 2020 e 2021, houve, praticamente, estabilidade no roubo e furto de veículos e roubo e furto de celulares. Tivemos, ademais, queda de roubo a transeunte e queda no total de roubos.
* Texto em versão condensada. Para obter a versão originalmente publicada no Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2022, acesse: https://forumseguranca.org.br/wp-content/uploads/sites/2/2022/07/07-anuario-2022-os-crimes-patrimoniais-no-brasil-entre-novas-e-velhas-dinamicas.pdf