Operação Verão, Operação Escudo: receita pronta nos boletins de ocorrência inclui prejuízos à perícia e distanciamento da verdade
A remoção da vítima já em óbito em uma cena de crime empobrece e esvazia a possibilidade de que a perícia alcance o estabelecimento de uma dinâmica do fato mais próxima possível da realidade, o que acaba por privilegiar os depoimentos, sempre alinhados às versões daqueles que participaram das ações
Cássio Thyone Almeida de Rosa
Graduado em Geologia pela UnB, com especialização em Geologia Econômica. Perito criminal aposentado (PCDF). Professor da Academia de Polícia Civil do Distrito Federal, da Academia Nacional de Polícia da Polícia Federal e do Centro de Formação de Praças da Polícia Militar do Distrito Federal. Ex-presidente e atual membro do Conselho de Administração do Fórum Brasileiro de Segurança Pública
Duas operações realizadas pela Secretaria de Segurança de São Paulo na Baixada Santista têm escancarado uma forma de atuação que inclui ações que acabam por prejudicar a realização de exames periciais em locais de mortes, neste caso associadas a intervenções policiais.
As duas operações estão diretamente associadas a respostas do estado em razão de mortes de policiais ocorridas na região. Durante o ano de 2023, a Operação Escudo, que perdurou por 40 dias, foi deflagrada após a morte do policial militar da Rota Patrick Bastos Reis. Já a 3ª fase da Operação Verão, por sua vez, foi estabelecida depois da morte de Samuel Wesley Costa, outro PM da Rota, com o reforço policial, e se encontra em andamento.
A Operação Verão atingiu no início desta semana a marca de 29 mortes em ações policiais, superando a marca da Operação Escudo, e com potencial de superar em muito o número absoluto alcançado pela operação anterior na Baixada. Segundo dados divulgados na mídia, a Operação Escudo de 2023 teve o registro de aproximadamente 0,7 morte por dia. Já a Operação Verão registrou até o momento cerca de 1,6 morte por dia, com 23 dias a menos de duração até aqui.
No início deste mês, uma reportagem chamava a atenção para alguns aspectos verificados nos Boletins de Ocorrência (BOs), relacionados a sete mortes ocorridas no primeiro final de semana de fevereiro. Entre os aspectos que chamavam a atenção nestes BOs, a repetição de versões apresentadas pelos policiais militares, que parecem seguir um padrão, um script, quase um mantra, sugerindo uma verdadeira receita pronta criada para lidar com esse tipo de ocorrência. A receita inclui invariavelmente abordagem de suspeitos, troca de tiros, vítimas alvejadas, drogas e armas apreendidas com as vítimas e uma irrefutável ação em “legítima defesa”.
Quanto às questões que envolvem a perícia de local de crime, há também padrões já conhecidos, como por exemplo: socorro às vítimas já em óbito, que muitas vezes são tão evidentes que dificultam a real possibilidade de que tenha havido uma intenção efetiva de preservação da vida, por exemplo, em vítimas de múltiplos disparos de arma de fogo, incluindo regiões como cabeça e tórax.
A remoção da vítima já em óbito em uma cena de crime empobrece e esvazia a possibilidade de que a perícia alcance o estabelecimento de uma dinâmica do fato mais próxima possível da realidade, o que acaba por privilegiar os depoimentos, sempre alinhados às versões daqueles que participaram das ações. A ausência do cadáver no local não possibilita, por exemplo, qualquer análise da posição do corpo, em contexto com seu entorno, impedindo também discussões a respeito de possíveis trajetórias de disparos e outros elementos de interesse.
Quadro ainda pior do que esse se dá quando a perícia de local sequer é realizada, sob alegações variadas como insegurança para equipe, ou mesmo “ausência de vestígios”.
Essa realidade verificada nas operações da Baixada Santista está longe de representar uma novidade. No Rio de Janeiro, em operações como a do Jacarezinho e tantas outras, o “fenômeno” se repete como uma “nova velha prática”.
Recentemente, acessei excelente texto publicado numa rede social profissional, na qual um perito, o colega Paulo Akira, publicou em 2021 a reprodução de uma matéria que servira de capa do jornal “O Globo”, veiculada em 09/06/1933. O título da matéria: “Encontro de Morte: Preocupadas unicamente com as provas testemunhais, as autoridades continuam a despresar as provas scientíficas” (Grafia da época).
Em seu texto, Akira escreve:
“Desprezo às provas científicas: tradição ou atraso?
Em 30 de maio de 1933, no edifício Seabra, Rio de Janeiro, Sérgio Cartier supostamente desferiu um tiro em Gervasio Seabra e em seguida tirou a própria vida com um tiro na boca. O caso teve grande repercussão na época, ocupando por longo período as capas dos jornais. No texto que reproduzo a seguir, publicado pelo jornal O Globo dias depois do crime, o autor questiona a qualidade da investigação policial, que não teria atuado para isolar a cena de crime nem para recuperar vestígios que permitissem esclarecer as circunstâncias do evento. Chama atenção que todas as críticas feitas ao trabalho da polícia e da perícia em 1933 seguem perfeitamente aplicáveis às investigações atuais, quase 90 anos depois. O crime permanece sem uma solução satisfatória”.
O mais intrigante: aquilo que antes considerávamos mera incompetência agora é estratégia!
Nota: Aqueles que desejarem ler a matéria histórica do jornal, já devidamente adaptada, podem fazê-lo acessando este link.