Operação na Vila Cruzeiro: velhos e novos clichês: “Bandido bom é bandido morto!” “Cadáver bom é cadáver socorrido!”
O cadáver socorrido não vai "falar" na cena do crime; não permitirá que os peritos se aproximem de como se dera a dinâmica dos últimos momentos de vida de uma pessoa
Cássio Thyone Almeida de Rosa
Graduado em Geologia pela UnB, com especialização em Geologia Econômica. Perito Criminal Aposentado (PCDF). Professor da Academia de Polícia Civil do Distrito Federal, da Academia Nacional de Polícia da Polícia Federal e do Centro de Formação de Praças da Polícia Militar do Distrito Federal. Ex-Presidente e atual membro do Conselho de Administração do Fórum Brasileiro de Segurança Pública
No dia 24 passado, o Rio de Janeiro chegou bem perto de estabelecer um triste e emblemático recorde: uma operação policial deflagrada na Vila Cruzeiro, uma das favelas do Complexo da Penha, na zona norte, resultou na morte de 23 pessoas (número obtido após a revisão dos dados, já que inicialmente foram divulgados 26 óbitos). Um ano atrás, no Jacarezinho, foram 28 os mortos. Ficou assim como a segunda operação mais letal da história da cidade, até o presente momento.
Segundo informações extraídas da mídia, “em apenas um ano, o atual governo do estado do Rio acumula 181 mortes e 39 chacinas – que são todas as ações com pelo menos três mortes, segundo pesquisas da área de segurança pública –, sendo que 31 delas ocorreram em operações policiais”.
Novamente se repete um mesmo contexto. Operações em comunidades, tiroteios, vítimas socorridas já sem vida, locais de exames periciais sem preservação e adulterados. Inquéritos sem o devido esclarecimento, falta de transparência.
Para apimentar ainda mais esse enredo, a participação efetiva da Polícia Rodoviária Federal (PRF) nessa operação foi objeto de muitas críticas e discussões, exatamente uma semana na qual a PRF desejaria esquecer, já que no dia 25, três de seus policiais, a milhares de quilômetros do Rio, acabaram atraindo de maneira negativa os holofotes do noticiário: protagonizaram a morte de um homem negro, no que vem sendo chamado de morte na câmera de gás, uma vez que o óbito se dera num cubículo de uma viatura, após os policiais lançarem uma granada de gás lacrimogêneo (em apuração) e fechar a tampa do cubículo, enquanto a vítima, com pés e mãos imobilizados, experimentava o horror de uma morte brutal por asfixia.
Mas ainda assim, sobre a operação na Vila Cruzeiro, insistem em nos dizer que podemos ficar tranquilos, pois a Polícia Militar logo esclareceu que a maioria esmagadora das vítimas era composta de suspeitos de crimes! Apenas uma moradora “de bem” teria sido morta, atingida pelas nossas conhecidas balas perdidas cariocas. Gabriele Ferreira da Cunha, de 41 anos, foi alvejada dentro de sua casa na Chatuba, que fica ao lado da comunidade do Cruzeiro. Enfim, o clichê do “bandido bom é bandido morto” reaparece nos discursos mais insanos.
Sobre a repetição desse roteiro para a perícia, importa lembrar que cadáver socorrido não testemunha, aliás, testemunha muito pouco, já que não está na cena do fato quando a perícia é realizada (quando realizada), e, portanto, pouco contribui para a determinação da dinâmica do fato. Esse cadáver só consegue se expressar minimamente quando examinado no IML, mas mesmo assim poucos estão preparados para ouvi-los.
Quando falamos das práticas que envolvem a perícia nesse tipo de ocorrência, a nossa regra é a exceção, ou seja, não precisamos mais obedecer o que está na lei; nesse caso, o que preconiza o Código de Processo Penal – CPP.
Parece uma insistência tocar nesse ponto, mas é preciso. Não há chance de esclarecimento dos fatos quando a falta de transparência começa já na ausência de exames periciais completos (digo completos quando imagino que cada vítima certamente estava em um local de crime, e que pode eventualmente ser o mesmo para mais de uma vítima). A completa determinação da dinâmica de como os fatos ocorrem não serve apenas para cumprir uma formalidade, ela serve para garantir que as ações desenvolvidas pelas forças de segurança se deram dentro dos ditames legais e da previsão do uso da força. Afinal, como diz o velho ditado: – Quem não deve, não teme.
Surge dessa prática então um novo clichê: “cadáver bom é cadáver socorrido!” já que esse não vai tentar “falar” na cena de crime. Não vai permitir que os peritos se aproximem de como se dera a dinâmica daqueles que foram, sem dúvida, os últimos momentos de vida de uma pessoa. Agora é aguardar. O quê? Mais um arquivamento! Vida que segue!