Operação Escudo e a urgência de uma doutrina antirracista na segurança pública
A segurança pública tratada com a seriedade e assumida com a complexidade que lhe é inerente, é um direito fundamental. Uma Secretaria de Estado que chancela uma política que autoriza o uso da força letal na lógica do combate ao inimigo está ativamente atuando para precarizar a condição de vida da população negra
Juliana Brandão
Doutora em Direitos Humanos pela USP e pesquisadora sênior do Fórum Brasileiro de Segurança Pública
A política de segurança pública dos Estados há de ser expressão de uma atuação que observa as diretrizes nacionais da Política Nacional de Segurança Pública e Defesa Social (PNSPDS, instituída pela Lei 13.675/18) que elege, entre outros princípios, a proteção aos direitos humanos e aos direitos fundamentais e a promoção da dignidade da pessoa humana como balizas de atuação do Poder Público. Além disso, tem entre seus objetivos o estímulo às ações de prevenção à violência e à criminalidade, dando prioridade, afora outros grupos vulneráveis, à letalidade da população jovem negra.
Muito se diz que a lei não traz palavras inúteis. Se tomarmos essa máxima como uma advertência, não mais será possível ignorar que o racismo tem tido livre trânsito nas entranhas institucionais, ali se fortalecendo, além de encontrar solo fértil para germinar posturas e comportamentos que em nada se alinham com a projeção de uma sociedade que almeja a igualdade.
Nessa linha, a Operação Escudo – que neste início de 2024 retoma uma ação iniciada em julho de 2023 e já ali foi frontalmente questionada, não só pela sociedade civil, como também por órgãos do sistema de justiça, com denúncias de tortura, mortes e violência decorrentes de atuação policial –, vem se constituindo como exemplo que materializa o racismo institucional no recorte da segurança pública no âmbito do Estado de São Paulo.
Uma Secretaria de Estado que chancela uma política como a Operação Escudo, autorizadora do uso da força letal na lógica do combate ao inimigo, está ativamente atuando para precarizar a condição de vida da população negra. Trata-se aí de racismo institucional, pois pelo desenho organizacional traçado pelo próprio Estado são gerados impactos que atingem negativamente um grupo determinado. Aparentemente neutra, narrada como uma resposta a uma agressão, a Operação Escudo escamoteia que tanto o cidadão alvo da atuação de policiamento ostensivo, quanto o policial que o executa se alternam em um combate fratricida, no qual o direito às vidas negras se esvai.
Entre a nada sutil “fundada suspeita” que pré-seleciona, entre jovens negros, potenciais culpados, e a obediência à ordem hierárquica que, na ponta, será executada pela baixa patente cujo pertencimento racial sabemos qual é, hierarquizam-se, sem pudor, as vidas que justificam proteção e as que podem simplesmente ser descartadas.
Uma engrenagem como essa não opera isoladamente. Reforça esse argumento o fato de que, no PPA 2020-2023 (Lei estadual 17262/20), instrumento de planejamento governamental para um quadriênio, apontando para as mudanças de médio e longo prazo com as quais o governo estadual se compromete a alcançar, não há, entre as suas diretrizes, objetivos ou metas, qualquer menção direcionada expressamente ao enfrentamento do racismo.
Especificamente, quanto à segurança pública, listada entre os nove objetivos estratégicos da Administração Pública Estadual, o comando normativo se resumiu a prever o uso de ferramentas no combate à criminalidade (artigo 4º, inciso III). Em outras palavras, aí se abriga uma visão de segurança pública cujo centro são as atividades repressivas e que, ao silenciar sobre o racismo, deliberadamente decide que a igualdade racial e o combate à discriminação não merecem atenção enquanto política de Estado.
A segurança pública tratada com a seriedade e assumida com a complexidade que lhe é inerente, é um direito fundamental. Desse modo, regula o direito à vida vivida, o cotidiano de ir e vir, o direito a ser quem se é, a fruição de escolher qual caminho seguir, sem que uma bala interrompa essa trajetória. Isso vale para os cidadãos e, do mesmo modo, para os policiais.
A aposta na pura repressão, elegendo-a como central na política, atesta a sua superficialidade e total inadequação. Com informações truncadas e não transparentes, a Operação Escudo contabilizou 28 vítimas na sua edição de 2023 e segue a cada dia de sua existência aumentando o número de mortes a ela relacionada.
Não é novidade que o campo da segurança pública é por vezes tomado por soluções imediatistas que pretendem trazer soluções rápidas e definitivas. A reedição de uma linha de ação pública sabidamente ineficaz e violenta é prova disto. O enfrentamento do racismo como uma ferramenta hábil para uma intervenção efetiva na segurança pública precisa ocupar a agenda. Precisamos de uma inversão de prioridades que permita questionar as mentalidades vigentes.
A própria noção de segurança pública precisa então abarcar a doutrina antirracista como linha orientadora de políticas públicas nessa área. Isso pode gerar efeitos nas condutas dos agentes de segurança pública que são convocados a intervir diante das ocorrências criminais. Pensar esses agentes como focos que se não eliminam, ao menos neutralizam o racismo, pode gerar um ciclo virtuoso junto às demais políticas públicas.