Operação Escudo apostou na viabilidade política de mortes negras
Relatório do CNDH publicado em 01/09 relatou vigilantismo, execuções extrajudiciais e ingerência interinstitucional orientada a possível queima de arquivo. As principais vítimas foram jovens negros e seus familiares. Operação foi dissolvida depois de 40 dias desastrosos
Dennis Pacheco
Pesquisador da equipe técnica do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, mestrando em Ciências Humanas e Sociais na UFABC e alumni do International Visitor Leadership Program
Desencadeada após a morte de um policial da ROTA, unidade da PM de São Paulo, a Operação Escudo é um retrocesso bastante emblemático, porque desfaz ativa e ostensivamente todo o progresso que vinha sendo construído pelo Programa Olho Vivo em torno do aumento da transparência, do controle e da responsabilização sobre a atividade policial no estado.
O Programa foi alicerçado sobre três dimensões de transformação:
- Na dimensão política, o então governador João Doria se distanciou de discursos encorajadores de letalidade policial.
- Na dimensão administrativa, mecanismos como as Comissões de Mitigação de Não Conformidades romperam com a cultura institucional de solidariedade sórdida para com policiais envolvidos em ações com resultados letais, fazendo com que passassem a ser avaliados por oficiais com quem não tinham vínculos diretos. Nesse mesmo sentido, a normatização do Sistema de Saúde Mental da Polícia Militar sinalizou valorização profissional da categoria, distanciando-se da percepção de policiais enquanto heróis, vigilantes e higienizadores sociais, e aproximando-se de uma compreensão do policial enquanto trabalhador.
- Na dimensão tecnológica, a implementação das câmeras corporais e de armamentos menos letais também profissionalizam a atividade policial, constituindo dispositivos de transparência, controle, responsabilização e incentivo a uso escalonado da força.
Estudo produzido pelo FBSP sobre câmeras corporais constatou que, entre 2019 e 2022, ou seja, até o início do governo Tarcísio de Freitas, o Programa Olho Vivo reduziu a letalidade da Polícia Militar em cerca de 63%. Nos batalhões em que as câmeras foram implementadas, a redução foi de 76%. Nos demais, 33%. A redução da letalidade ocorreu de forma focalizada. A taxa de mortes decorrentes de intervenção policial de brancos caiu de 1 para 0,3 por 100 mil (redução de 66%), a de negros, de 2,7 para 1 por 100 mil (redução de 64%). Simultaneamente, as mortes de vítimas entre 10 e 19 anos caíram 66%.
Já na corrida eleitoral, o governador Tarcísio de Freitas e seu secretário de Segurança Pública, Guilherme Derrite, anunciavam que descontinuariam o Programa enquanto construíam sua plataforma eleitoral sobre o demagógico discurso linha dura de combate ao crime pela letalidade policial. Dados o êxito do programa expresso pelas evidências estatísticas, o apelo popular de seu sucesso e a mobilização da sociedade civil em torno da pauta, que ganhou aderência após as mobilizações globais pós-George Floyd, a escolha do atual governo parece ter sido pela sabotagem do programa, pela desestruturação de duas de suas dimensões, a) a político-discursiva, pelo recurso a discursos retrógrados e racistas de incentivo à letalidade policial, e b) tecnológica, pela descontinuação do processo de difusão das câmeras e realocação de parte da verba destinada a elas para ações de policiamento ostensivo.
É neste contexto que está inserida a Operação Escudo, que constitui um emblema da ruptura com a trajetória de redução da letalidade e promoção de profissionalização da atuação policial em prol do discurso de incentivo às mortes, previamente justificadas pelo recurso à criminalização das vítimas.
Na sexta, 1º de setembro de 2023, foi publicado Relatório do Conselho Nacional de Direitos Humanos, produzido a partir de Missão acompanhada por diversas organizações da sociedade civil, incluindo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Os relatos colhidos de testemunhas e moradores são de policiais mascarados, sem identificação, praticando execuções sumárias (com relato de que policiais novatos seriam batizados executando vítimas), intimidações, ameaças de morte, alteração de locais de crimes, destruição de evidências, tortura e proibição de uso de câmeras de monitoramento. Chama atenção a articulação institucional sugerida pelos relatos, que alegam que policiais estariam ativamente exercendo autoridade e coerção para impedir acesso a serviços públicos (dentre eles atendimento médico), fazendo com que médicos e socorristas do SAMU colaborassem entre si para inviabilizar a sobrevida das vítimas por práticas como demora no atendimento de urgência, promoção de altas médicas de pacientes de quadro gravíssimo e negando o acesso de famílias a informações. Para além disso, alega-se que guardas civis municipais estariam promovendo remoções forçadas e demolições de casas sem autorização judicial, sob a alegação de que estariam sob uso do tráfico de drogas.
O MPSP afirma que está tendo dificuldades de realizar oitivas das vítimas e testemunhas, que temem represálias. O Ouvidor das Polícias de São Paulo relata ter sofrido ameaças de morte, além de ter seu acesso às imagens das câmeras corporais negado. A Secretaria de Segurança Pública de SP cancelou reunião com o CNDH. A Defensoria Pública demonstra evidente seletividade racial: 71,8% dos presos em flagrante durante a Operação entre 27/07 e 15/08 eram negros, 73% teriam cometido crimes não-violentos. Em 90% dos casos, não foram apreendidas armas de fogo e em 67% não foram apreendidas drogas. A maioria das vítimas das polícias no Brasil é também negra (83,1%), e jovem, entre 12 e 29 anos (76%).
Todas as instituições supracitadas reivindicaram o fim da operação. Quatro dias após a publicação do relatório do CNDH, a operação foi dissolvida.
A resiliência do Programa Olho Vivo esteve à prova enquanto Tarcísio e Derrite dobraram várias vezes sua aposta sobre a capacidade da letalidade policial de viabilizar carreiras políticas. Os principais stakeholders desse embate foram a democracia, a legalidade, a legitimidade das instituições de controle externo da atividade policial e, principalmente, nossas vidas jovens, negras e periféricas. Após 40 dias desastrosos, a mobilização conjunta da sociedade civil e dos órgãos de controle e pressão do Estado surtiram efeito. Sofremos muitas perdas e os retrocessos do executivo estadual têm se mostrado intensos. Contudo, o debate antirracista em torno da letalidade policial parece ter avançado a ponto de não ser um impulsionador político garantido. A importância de vidas negras e periféricas pode estar sob disputa, mas alçou centralidade no debate da segurança pública. É preciso continuarmos atuantes para a consolidação da segurança pública como direito fundamental, a fim de promover a defesa das vidas mais vulnerabilizadas, negras, pobres e periféricas.