O sindicalismo e o policial
A decisão do STF que proíbe greves policiais determina que “é obrigatória a participação do Poder Público em mediação instaurada pelos órgãos classistas das carreiras de segurança pública (...)". Algum governante já foi questionado por não cumprir esse requisito?
Livio José Lima e Rocha
Investigador da Polícia Civil do Estado de São Paulo desde 1999. Bacharel em Ciências Jurídicas pela Universidade Paulista, pós-graduação lato sensu em Direito Penal pela Faculdade Metropolitanas Unidas e mestre em Gestão e Políticas Públicas pela FGV-SP. Membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública
Numa época em que temos forças policiais em expresso movimento grevista, mesmo contrariando leis orgânicas, regimentos internos e um julgado do STF no Recurso Extraordinário com Agravo 654.432 Goiás (ARE 654432/GO), que impôs proibição absoluta de exercício do direito de greve aos servidores da segurança pública, notamos que diversos debates e análises focam nas questões institucionais mas esquecem o servidor e a servidora da segurança pública. O que precisa acontecer para essas pessoas exercerem esse direito proibido de greve? Embora caiba uma longa dissertação sobre o assunto, pretendemos oferecer um ponto de vista diferente e breve nesta oportunidade.
Primeiro, notemos que a grande maioria das forças policiais brasileiras exigem o ensino médio como escolaridade em seus respectivos concursos públicos. Logo, a profissão policial, em regra, costuma ser a primeira profissão exercida pela pessoa e, provavelmente, será a única até a aposentadoria. Deste fato, extraímos que a pessoa que ingressa na polícia não exerceu outras profissões que desenvolviam uma atividade sindical. Assim, o policial não tomou conhecimento que uma atividade sindical requer três poderes: possibilidade de sindicalização (algo vedado nos regramentos militares), negociação coletiva (o órgão contratante fica obrigado a cumprir o que for acordado) e o direito de greve, como última medida contra o órgão contratante que não aceita fazer acordo ou não cumpre o que foi acordado. É pacífico notarmos esse “tripé” em categorias como bancários, professores e outras com tradição sindical.
Além dessa falta de experiência classista anterior, o policial ainda tem outro fator dificultador para entender atividade sindical: entre suas atribuições, está atuar na atividade repressora do Estado contra a atividade sindical de outras categorias, tanto com tropas de choque no policiamento ostensivo quanto nas investigações e atividade de inteligência no policiamento investigativo; ou seja, uma policial que queira aderir ao movimento sindical precisa superar essa natureza do próprio trabalho. Ainda fica um pouco pior quando a chefia máxima das polícias, os governadores, é a primeira a ir a público e condenar manifestações sindicais de qualquer natureza, sem tentativa prévia de sentar-se à mesa para negociar com as categorias.
Antes de falarmos mais sobre essa falta de negociação, vejamos como funciona em outros países. Numa amostragem rápida, envolvendo África do Sul, Alemanha, Inglaterra, Argentina e México, é pacífica a proibição dos policiais de exercerem o direito de greve pela legislação. Lá como cá, isso não serve como obstáculo, visto que existem várias maneiras de protestar: abandonar os postos (Argentina, 2013), atestados médicos simultâneos (“blue flu”, Los Angeles, EUA, 2020), greve dos servidores administrativos não-policiais da polícia (África do Sul, 2021), entre outras. No Brasil, embora sejam as imagens de policiais ocupando as ruas em protesto que causem maior impressão na audiência, tivemos operações “cumpra-se a lei” (não sair para patrulhamento enquanto não for fornecido colete dentro do vencimento; não patrulhar com viaturas que não estejam em condições adequadas) e operações-padrão (usar todas as possibilidades administrativas e/ou jurídicas para prolongar demasiadamente atos policiais do cotidiano).
Juntando todas essas peças, verificamos que um policial, para entrar em greve, precisou superar o fato de estar num órgão que tem, entre sua atribuições, reprimir greves; precisou, mesmo num cargo que tem o dever de obedecer a lei, desobedecer diversos regramentos que proíbem a ação grevista; e, por fim, precisou desobedecer ordens de seus superiores hierárquicos, incluindo os governadores.
Como vimos, a greve é o último recurso usado por movimentos sindicais, quando não houve acordo ou não foi cumprido o acordado. Assim, sugerimos que em cada protesto policial no Brasil, antes de condenarmos quem está realizando, seja analisada a inobservância da segunda parte da citada decisão do STF (ARE 654432/GO) que proibiu greves policiais: “é obrigatória a participação do Poder Público em mediação instaurada pelos órgãos classistas das carreiras de segurança pública, nos termos do art. 165 do Código de Processo Civil, para vocalização dos interesses da categoria”. Alguém já viu o noticiário comentando essa segunda parte? Algum governante foi questionado sobre o não cumprimento dessa segunda parte? Algum movimento reivindicatório policial foi realizado sem tentar o cumprimento dessa segunda parte?
Não tivemos a intenção de trazer uma resposta definitiva sobre o grevismo policial no Brasil. O que nos cabe é buscar o aperfeiçoamento do debate, sem defesa incondicional de nenhuma das partes envolvidas, com a priorização do que realmente interessa para a sociedade: uma segurança pública cidadã, com governança democrática, com trabalhadores e trabalhadoras da segurança pública devidamente remunerados e governos que procurem negociar demandas classistas e não, simplesmente, fechar as portas e condenar quem pleiteia condições dignas de trabalho.