O silencioso adoecimento psíquico de policiais no Brasil
Suicídios vitimam mais os policiais do que confrontos em serviço. Para prevenir que mais mortes ocorram, é preciso monitorar a saúde mental dos profissionais de segurança pública e dar visibilidade para os dados de vitimização policial
Juliana Martins*
Psicóloga, Doutora pelo Instituto de Psicologia da USP e Coordenadora Institucional do Fórum Brasileiro de Segurança Pública
Juliana Lemes da Cruz
Doutora em Política Social pela UFF, Conselheira do Fórum Brasileiro de Segurança Pública e Cabo da Polícia Militar de Minas Gerais
Os dados referentes às mortes de policiais civis e militares em 2022 disponibilizados pelas secretarias estaduais de segurança pública nos mostram um cenário já observado nos anos anteriores: policiais morrendo mais em confronto ou por lesão não natural na folga, depois por suicídio e, por último, em confronto em serviço. Em 2022, morreram 173 policiais assassinados e 82 por suicídio. Daqueles que foram mortos, sete em cada 10 morreram na folga. Foram 40 policiais a mais assassinados em comparação com 2021.
É essencial abordarmos as questões relacionadas ao suicídio entre os policiais. Tema sempre permeado por incertezas e que traz à tona pontos cruciais para o desenvolvimento do trabalho policial relacionados diretamente à qualidade de vida dentro e fora das polícias. Se na sociedade em geral falar sobre suicídio e saúde mental é tarefa já bem difícil, dentro das corporações é ainda mais.
Segundo a OMS, a taxa global de suicídios vem diminuindo. Entre 2000 e 2019 a taxa mundial diminuiu 36%, enquanto nas Américas cresceu 17%, sendo a quarta causa de morte mais recorrente entre jovens de 15 e 29 anos.
Os dados levantados para o 17º Anuário trazem um cenário de pouca clareza sobre a morte de policiais por suicídio. Em 2022, foram registrados 69 casos em policiais militares da ativa. Entre os policiais civis, 13 cometeram suicídio. Esses números destacam a importância de abordar questões de saúde mental entre os profissionais da segurança pública. A exemplo do que observamos em anos anteriores, é a ausência dos dados o que nos chama mais atenção. Dentre todos os dados coletados para o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, os de vitimização seguem sendo os mais precários, junto com violência contra a população LGBTQIA+ e pessoas desaparecidas. Ou os estados não possuem a informação ou o registro é de fenômenos inexistentes.
Seja qual for o motivo de as secretarias estaduais ou de as polícias não compartilharem as informações ou não terem a prática de sistematizá-las, não falar dos números e, portanto, não dar visibilidade a eles, não protege os policiais. Pelo contrário, passa a ideia de que o problema não existe, agravando ainda mais a situação daqueles que precisam de ajuda e não sabem o que fazer. O silêncio contribui para que essas pessoas se sintam ainda mais sozinhas e inadequadas.
A falta de clareza sobre os dados de mortes de policiais em decorrência de lesão autoprovocada ou autoextermínio/suicídio afeta não apenas a categoria dos policiais, mas os rumos da Segurança Pública. Talvez em razão da insuficiência de informações qualificadas, o assunto tem sido pouco discutido. Sob tal perspectiva, a urgência de atenção à garantia da Segurança Pública como Direito Social, assim como previsto na Carta Magna, tem sido relegada ao campo da invisibilidade quando, na medida que tem condições de fazê-lo, o Estado deixa de tratar com zelo os recursos humanos investidos de poder para realizar a implementação das políticas voltadas à Segurança Pública, condição precípua para a garantia de direitos. A marginalização desse campo encontra-se refletida na ausência de dados que nos permitam mensurar a magnitude dos problemas. Sem informação precisa e tratada, suicídios de policiais aparecem, de tempos em tempos, como chamada dos jornais, mas não têm sido o suficiente para a adequação das respostas institucionais, a fim de que outras mortes sejam evitadas.
Certo é que, se o problema não aparece em números, ele não existe. E se o problema não existe, desnecessária qualquer intervenção. Em que pese as instituições tenham ciência que seus quadros têm apresentado comprometimento da saúde mental, a forma como se responde ao problema tende a atribuir aos profissionais, enquanto indivíduos, a responsabilidade pelo adoecimento, limitando-se à difusão de informações sobre o assunto e a cobrança do policial quanto ao autocuidado. Deste modo, desresponsabilizando as instituições pelo fracasso na condução do problema ao acolher políticas reprodutoras da máxima de que deve prevalecer o interesse institucional em detrimento das mínimas condições de saúde física e mental do trabalhador responsável pelo cumprimento das atividades programadas pela instituição.
Embora os dados coletados não nos permitam dizer o que levou os policiais a cometerem suicídio, é possível levantarmos alguns pontos importantes para a compreensão do contexto no qual estão inseridos os profissionais da segurança pública. Dentre os condicionantes laborais para o aprofundamento dos problemas relacionados à saúde mental dos policiais, encontram-se: a) o assédio moral; b) a admissão do papel de “policial herói”; c) o desgaste físico e mental em razão do contato continuado com situações de perigo; d) a cobrança institucional pelo cumprimento de metas; e) o endividamento; e f) a insegurança jurídica.
A garantia da Segurança Pública como Direito Social se opõe à invisibilidade dos componentes que condicionam sua viabilidade. Assim, o cuidado com a categoria dos policiais para que suas ações reflitam a segurança pública esperada, envolve o olhar atento e permanente desde o ingresso, com a formação inicial, até o pós-aposentadoria do servidor. Se, por outro lado, a segurança pública como política e direito social for relegada ao esquecimento, a população contará, em regra, com policiais reativos a tudo que contrarie a política institucional adotada. Por isso, faz-se tão importante que a segurança pública não seja compreendida como interesse apenas das categorias a ela associadas. Constitui fundamental que seja uma agenda permanente na política e preocupação coletiva, uma vez que seu formato influencia as demais políticas (saúde, educação, assistência, cultura etc.), e é de interesse de toda a sociedade, independentemente de raça, classe ou gênero.
Para finalizar, é importante dizer que, no geral, os dados de vitimização policial disponíveis são muito ruins e não dão visibilidade para aquilo que precisamos compreender, se queremos prevenir a morte de policiais. Parece-nos que as instituições não dão a mesma relevância ou importância à coleta de dados de mortes de policiais como dão a outros tipos de crimes ou acontecimentos de outras mortes violentas, por exemplo. Nesse sentido, é preciso dizer que são muitos os esforços para termos um maior entendimento sobre o que acontece quando nos referimos à vitimização policial, sobretudo os suicídios de policiais, e não se resumem apenas ao levantamento e sistematização das informações oficiais por parte do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Há também o levantamento do IPPES , que tem à frente a Profa. Dayse Miranda, e que anualmente publica o “Boletim de Notificações de mortes violentas intencionais e tentativas de suicídios entre profissionais de segurança pública no Brasil”, através de uma coleta das informações em ocorrências registradas pelas instituições de segurança pública, compartilhadas em grupos de WhatsApp de agentes de segurança pública e notícias publicadas em jornais ou websites e notas de pesar divulgadas em sites de grande circulação e das instituições de segurança pública.
É importante frisar e incentivar que as organizações policiais tenham uma noção mais ampla do contexto da vitimização de policiais e que não se restrinja o olhar apenas aos policiais que morrem, mas aos que adoecem também. A vitimização tem uma camada muito profunda de acometimentos que não necessariamente matam aquele policial, mas que são sinais importantes que precisam ser monitorados se a gente quer trabalhar na prevenção de mortes. São doenças e comorbidades que podem, sim, ser decorrentes do trabalho policial e que precisam de extrema atenção por parte dos gestores dessas organizações se queremos prevenir que mais mortes aconteçam. Essas instituições policiais sabem, por exemplo, quantos policiais estão afastados por questões de saúde mental e por quanto tempo? Quando eles voltam dessas licenças, o que é feito com eles, para onde vão? Como é sua reinserção no trabalho? Ou eles são colocados de lado, deixados num canto, porque ninguém sabe lidar com eles? A saúde dos policiais é um assunto de interesse de todos nós. Preservar suas vidas também. Mas, para que isso seja possível, as informações precisam chegar.
* Este texto foi originalmente publicado na 17ª edição do Anuário Brasileiro de Segurança Pública. A íntegra do documento pode ser acessada em https://forumseguranca.org.br/anuario-brasileiro-seguranca-publica/