Múltiplas Vozes 22/05/2024

O Rio Grande do Sul no epicentro da catástrofe climática: entre a solidariedade civil, a ação estatal e a anomia social

O Rio Grande do Sul é um laboratório dos caminhos possíveis para o enfrentamento de tragédias climáticas. A maneira como os processos de reconstrução das moradias e de recuperação das possibilidades de renda da população vão ocorrer daqui para a frente acarretará consequências diretas a médio e longo prazo para a segurança pública

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Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo

Sociólogo, Professor Titular da Escola de Direito da PUCRS, pesquisador do INCT-InEAC e bolsista do CNPq, associado sênior do Fórum Brasileiro de Segurança Pública

Quem vive em Porto Alegre há menos de 83 anos jamais vivenciou uma situação como a que ocorreu a partir do dia 1º de maio de 2024, com a enchente de grandes proporções que inundou o Centro e diversos bairros da cidade, instituições públicas e privadas, moradias populares e prédios de classe média, shoppings, parques e praças, e que se estendeu por toda a grande Porto Alegre e cidades como Guaíba, Eldorado do Sul, Canoas e São Leopoldo, e desceu pelo lago Guaíba em direção à Lagoa dos Patos, chegando até Pelotas e Rio Grande, no sul do estado.

As chuvas torrenciais aconteceram em diversas regiões do centro, do norte e da serra, e varreram cidades, pontes e estradas no trajeto dos rios Jacuí e Taquari, entre outros menores, todos desaguando no estuário do Guaíba, que recebeu 14,2 trilhões de litros de água entre 1º e 7 de maio, segundo o Instituto de Pesquisas Hidráulicas da UFRGS, o que corresponde à metade de toda água contida no reservatório da Usina de Itaipu. Se em Porto Alegre não se tinha parâmetro anterior à cheia de 1941 para mensurar o ocorrido, em algumas cidades do interior gaúcho os eventos climáticos com grande volume de chuva e destruição têm se repetido, a indicar que a combinação do fenômeno El Niño com o aquecimento global e a ação local de desmatamento e exploração rural extensiva, assim como a ocupação urbana de áreas alagadiças, tendem a tornar este cenário mais frequente.

O conceito de sociedade do risco, desenvolvido pelo sociólogo alemão Ulrich Beck (1944-2015), refere-se a uma característica distintiva das sociedades modernas, nas quais a produção de riquezas é acompanhada pela geração de riscos significativos e globais, que transcendem fronteiras geográficas e sociais; esses riscos, muitas vezes, não podem ser previstos ou controlados de maneira eficaz pelas instituições tradicionais. Segundo Beck, na sua obra seminal “Risikogesellschaft: Auf dem Weg in eine andere Moderne” (Sociedade do Risco: Rumo a uma Outra Modernidade), publicada em 1986, a modernização reflexiva provoca uma transformação na forma como os riscos são percebidos e administrados, resultando em uma sociedade que está continuamente confrontada com as consequências não intencionais do seu próprio progresso.

Neste contexto, os riscos globais, como os ambientais, tecnológicos, econômicos e até mesmo os relacionados à saúde pública, exemplificados por catástrofes naturais exacerbadas pelas mudanças climáticas, guerras e acidentes nucleares, crises financeiras e pandemias, ilustram como as ameaças modernas não são mais localizadas ou específicas, mas sim difusas e interconectadas; elas desafiam as estruturas estabelecidas de governança e exigem novas formas de cooperação e regulamentação global. Beck argumentava que essa onipresença do risco transforma as relações sociais, políticas e econômicas, levando a um estado de constante incerteza e obrigando os indivíduos e as sociedades a repensarem suas prioridades e modos de vida; a noção de segurança se torna fluida e o gerenciamento do risco passa a ser uma tarefa central nas agendas políticas e sociais.

Além disso, Beck salientava que, na sociedade do risco, a confiança nas instituições tradicionais, como o governo, as ciências e as corporações, diminui à medida que essas entidades frequentemente falham em prever ou mitigar os riscos, ou até mesmo podem contribuir para que ocorram; assim, as pessoas são forçadas a se tornar mais reflexivas e críticas em relação às informações e decisões que afetam suas vidas.

A perda de confiança nas instituições tradicionais mina a ordem democrática de várias maneiras, uma vez que ela depende da confiança dos cidadãos para funcionar adequadamente e produzir legitimidade social, o que resulta na desestabilização do sistema político como um todo, abrindo espaço para aventureiros populistas e “salvadores da pátria”. No Brasil e no mundo, líderes populistas, quase sempre de extrema direita, exploram o descontentamento e a insatisfação popular, apresentando-se como alternativas às elites políticas estabelecidas. Capitalizam o sentimento anti-establishment, e promovem uma mensagem simplista e emocional que apela às preocupações e ansiedades das pessoas.

A disseminação de fake news desempenha um papel central nesse processo. Nas redes sociais as notícias falsas podem se espalhar rapidamente para difamar oponentes, distorcer iniciativas e influenciar a percepção das pessoas sobre os fatos. A perda de confiança nas instituições pode levar à descrença nas informações e alertas sobre os riscos ambientais, resultando em complacência ou negação da gravidade das ameaças, dificultando a adoção de medidas preventivas adequadas. Além disso, polariza o debate público e resulta em disputas ideológicas que impedem a formulação e a implementação de políticas eficazes de proteção ambiental, retardando a resposta a catástrofes.

Em um ambiente político polarizado e marcado pela desconfiança nas instituições, os governos são pressionados a priorizar questões de curto prazo em detrimento das preocupações de longo prazo, levando à falta de investimento em infraestrutura resiliente, monitoramento ambiental adequado e preparação para desastres. Quando, em um ambiente de catástrofe climática como o que atingiu o estado do Rio Grande do Sul desde o início de maio, há uma saturação de informações conflitantes, desinformação e narrativas polarizadas, que minam a confiança da população nos agentes públicos e nas instituições democráticas, isso pode levar à percepção de que não há autoridade, regras claras ou normas sociais compartilhadas, resultando em um sentimento de desorientação e desconfiança generalizadas.

Mas apesar de todas as tentativas de ativistas e parlamentares ligados ao ex-presidente Bolsonaro de descredibilizar a ação estatal, os governantes e a sociedade civil organizada souberam discernir as prioridades. E sem entrar no mérito das responsabilidades de médio e longo prazo de cada uma das três esferas de governo pela tragédia, fato é que até aqui têm sabido coordenar esforços para salvar vidas, acolher desabrigados, tomar medidas emergenciais para garantir a recomposição das estruturas viárias, de energia e fornecimento de água, comida, roupas e atendimento médico, e tiveram todas de reagir às notícias falsas divulgadas nas redes sociais.

Fato também é que uma enorme corrente de solidariedade se formou em todo o estado e em todo o país, demonstrando a força e a importância da sociedade civil, em parceria com o Estado, para oferecer socorro, abrigo e condições dignas de existência para quem teve sua casa ou seu local de trabalho submerso pelas águas. Destaque também para a atuação da mídia, através das empresas de comunicação, que têm prestado um serviço público essencial ao assumirem o seu papel de levar informação fidedigna a todos os rincões afetados pela enchente e a todo o país, dando a real dimensão da tragédia e da necessidade de socorro ao estado e às vítimas.

Junto com a solidariedade, surgiram também denúncias de atuação oportunista da criminalidade em meio ao caos, com ações direcionadas ao furto e ao roubo de residências que ficaram abandonadas, assim como de lojas e mercados, tanto em cidades do interior como na capital. Também foram noticiados casos de assédio e abuso sexual nos abrigos, tendo como vítimas mulheres e crianças. As forças de segurança do estado registraram ao menos 130 prisões em maio, entre os dias 2 e 18. Destas, 49 foram em abrigos, e 48 por furtos em áreas afetadas pela enchente, em alguns casos em ações coordenadas por integrantes de facções ligadas aos mercados ilegais.

A ação das polícias civil e militar, que tiveram as férias suspensas e convocação de policiais aposentados para reforço do efetivo, com apoio das Guardas Municipais, do Corpo de Bombeiros, da Força Nacional, das Forças Armadas, das Polícias Federal e Rodoviária Federal, foi no sentido de priorizar em um primeiro momento os salvamentos, e em seguida a segurança pública, procurando debelar a sensação de insegurança nos abrigos e nas áreas alagadas, evitando a disseminação da anomia social. O Departamento Estadual de Investigações Criminais (DEIC) da Polícia Civil criou força tarefa para combater as fake news, e publicações que tiveram mais de 50 milhões de visualizações foram derrubadas, assim como dezenas de perfis que divulgavam informações falsas foram desabilitados[1].

No sistema prisional, em que vários presídios foram afetados, o CNJ emitiu diretrizes[2], orientando o Poder Judiciário local a implementar planos de contingência, autorizando a realização de audiências de custódia por videoconferência quando a presença física for inviável, orientando para a adoção da máxima excepcionalidade de novas ordens de prisão preventiva, e para a extensão do conceito de domicílio para a prisão domiciliar, abrangendo qualquer local seguro onde a pessoa possa estar. Orienta ainda a evitar a aplicação da monitoração eletrônica como medida cautelar, considerando as dificuldades de infraestrutura para funcionamento, a possível necessidade de deslocamento extraordinário, eventuais riscos à saúde da pessoa monitorada e possibilidade de avaria do equipamento, e a dispensa do comparecimento periódico em juízo de pessoas em liberdade provisória, assim como a revisão de prisões provisórias, com foco em gestantes, lactantes, mães ou responsáveis por crianças ou pessoas com deficiência, e outros grupos em situação de vulnerabilidade.

Por tudo isso, o Rio Grande do Sul é neste momento um laboratório dos caminhos possíveis para o enfrentamento de tragédias climáticas, e a maneira como os processos de reconstrução das moradias e de recuperação das possibilidades de renda da população vão ocorrer daqui para a frente acarretará consequências diretas a médio e longo prazo para a segurança pública. Garantir que os desabrigados possam retornar para suas casas sempre que possível, e no mais breve tempo, manter espaços de abrigamento, com privacidade para as famílias, com segurança, e com acesso ao transporte público, para que possam manter os filhos na escola e suas fontes de trabalho e renda, e impedindo que a gentrificação urbana se sobreponha aos destinos de milhares de famílias, são decisões-chave a ser tomadas, considerando a necessidade de políticas de enfrentamento à miséria e à falta de perspectivas de vida.

Como já sabemos desde junho de 2013, o sentimento constante de mal-estar contra a política, exacerbado em momentos de crise como o que estamos vivendo, pode enveredar por dois caminhos perigosos: o do puro e simples protesto eleitoral, quando os eleitores optam por qualquer candidato, independentemente da posição política, desde que proponha “acabar com a casta política ou “que se vayan todos”; ou a consolidação de uma cultura de ilegalidade generalizada, e de legitimação das desigualdades sociais pela “lei do mais forte”. Como propõe Lucía Dammert[3] a partir da experiência chilena, conter o cenário marcado pela antipolítica é tarefa fundamental para os que almejam ser os líderes democráticos do futuro, e em contextos de emergência climática se torna ainda mais urgente.

[1] https://gauchazh.clicrbs.com.br/seguranca/noticia/2024/05/deic-cria-forca-tarefa-para-combater-fake-news-sobre-enchente-no-rs-clw9m89hb001d019vevf8mnt5.html , acesso em 21/05/2024.
[2] https://www.cnj.jus.br/enchentes-no-rs-cnj-emite-diretrizes-para-sistemas-penal-e-socioeducativo/ , acesso em 21/05/2024.
[3] https://www.latercera.com/opinion/noticia/columna-de-lucia-dammert-dias-de-furia/VSW4VPHGEBBAJDHBVS6L2AYFEQ/ , acesso em 19/05/2024.

 

 

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