Múltiplas Vozes 03/12/2025

O rastro da pólvora e a cegueira deliberada: a quem interessa o descontrole das munições no Brasil?

Se o cidadão de bem não tem nada a esconder, e se a indústria de munições preza pela legalidade, por que o medo da rastreabilidade? Por que lutam com tanto afinco para que não saibamos de onde veio a bala que nos mata?

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Roberto Uchôa

Conselheiro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública e doutorando em Democracia do Século XXI no Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra

A segurança pública brasileira vive um paradoxo sangrento. Enquanto o Estado investe somas vultosas em operações policiais ostensivas, veículos blindados e aparatos de guerra para combater facções criminosas em territórios conflagrados, como visto recentemente na “Operação Contenção” no Rio de Janeiro, ele negligencia deliberadamente a torneira que alimenta esse poder de fogo. Na última semana, fomos confrontados com uma realidade estatística que, para quem estuda o mercado de armas e a dinâmica criminal, soa menos como surpresa e mais como a confirmação de uma tragédia anunciada: a compra de munições de fuzil por civis prossegue em patamares alarmantes.

Dados inéditos obtidos pelo Instituto Sou da Paz revelam que, apenas no primeiro semestre de 2025, os Caçadores, Atiradores e Colecionadores (CACs) adquiriram cerca de 1 milhão de munições de fuzil. Isso representa dois terços de todo o mercado nacional para esses calibres de guerra (.556, 7.62, .308). Estamos falando de uma média de mais de 5 mil unidades de alto impacto vendidas por dia a civis.

Este cenário levanta uma questão que ultrapassa a gestão de estoques e adentra a esfera da cumplicidade estatal: em uma sociedade na qual a violência armada é epidêmica, por que a rastreabilidade das munições continua a ser uma ficção administrativa? Por que, década após década, permitimos que o “combustível” da violência flua sem qualquer controle real até às mãos de quem puxa o gatilho contra a sociedade e contra o próprio Estado?

O Elo Perdido da Investigação Criminal

A munição é o insumo mais volátil e, ao mesmo tempo, o mais revelador da cena de um crime. Ao contrário da arma de fogo, que pode ser utilizada durante anos em múltiplos homicídios, a munição é consumível. Cada disparo deixa para trás um estojo, a “cápsula”, que deveria ser o fio condutor para os investigadores. Em um sistema de segurança pública sério, encontrar um estojo de fuzil .556 de fabricação nacional em uma cena de crime no Complexo da Penha ou em uma execução em São Paulo deveria permitir, em questão de minutos, identificar quem comprou aquele lote, em que loja e em que data.

No entanto, a realidade brasileira é de uma opacidade medieval. Além de as munições vendidas a pessoas físicas não serem marcadas, o que impossibilita o rastreamento de sua origem, não possuímos sequer um banco de dados nacional integrado e eficiente sobre munições apreendidas. As polícias estaduais, muitas vezes, não conversam entre si, e os dados sobre apreensões ficam mofando em depósitos ou perdidos em inquéritos, sem nunca serem transformados em inteligência policial.

Essa lacuna de informação é devastadora para a elucidação de crimes. Quando não tratamos a munição como prova rastreável, estamos afirmando que não nos importamos com a origem do crime. A ausência de prioridade dada pelos gestores de segurança pública a este tema é gritante. Preferem-se as “megaoperações”, que proporcionam imagens para a televisão e sensação de atividade, ao trabalho silencioso, cirúrgico e burocrático de investigar a origem das armas e munições. O primeiro método produz cadáveres e apreensões pontuais; o segundo desmantela redes logísticas e prende os fornecedores que quase nunca estão nas zonas de confronto.

Um Histórico de Desvios e Tragédias

A falácia de que “bandido não compra arma e munição em loja” cai por terra quando analisamos a história recente da violência no Brasil. O desvio de munições não é uma novidade; é um modus operandi consolidado.

Temos marcas indeléveis na nossa história causadas por munições que saíram de lotes oficiais ou legais. No Brasil, somente as munições vendidas a órgãos públicos são marcadas, e dois crimes de grande repercussão são os exemplos mais dolorosos que mostram a importância da rastreabilidade das munições. O assassinato da juíza Patrícia Acioli, em 2011, e a execução da vereadora Marielle Franco e do motorista Anderson Gomes, em 2018,.

No caso Marielle, os estojos encontrados na cena do crime pertenciam ao lote UZZ-18, vendido originalmente à Polícia Federal em 2006. Como essa munição foi desviada? Por quantas mãos passou? A falta de um controle rigoroso de estoques permitiu que munições compradas com dinheiro público fossem usadas para assassinar representantes do Estado e da sociedade civil e só foi possível obter em razão da marcação das munições.

Já o homicídio da juíza Patrícia Acioli foi esclarecido devido à rastreabilidade das munições que foram utilizadas no crime. Através dessa informação foi possível chegar à origem das mesmas e posteriormente aos mandantes e executores do crime, policiais militares lotados no batalhão de São Gonçalo, região metropolitana do Rio de Janeiro.

Mas o problema ganhou complexidade. Se antes a preocupação maior era o desvio dos paióis das forças policiais e militares, a flexibilização irresponsável promovida entre 2019 e 2022 abriu uma nova e caudalosa via de abastecimento: o mercado civil dos CACs.

Os dados recentes mostram que, mesmo com as mudanças normativas tentadas pelo governo Lula, o volume de munições de fuzil nas mãos de civis é excessivo. A figura do “laranja”, o cidadão sem antecedentes que obtém o registro de CAC apenas para comprar armas e munições e repassá-las ao crime organizado, tornou-se comum. Vimos isso em operações recentes nas quais CACs foram presos com arsenais de guerra destinados ao Comando Vermelho e ao PCC. Eles compram legalmente, a preços de mercado, e revendem com ágio para as facções. O lucro é alto, e o risco, devido à falta de rastreabilidade e precariedade nas investigações, é considerado baixo.

Além da munição original, temos o mercado paralelo da recarga. A legislação frouxa permitiu a aquisição massiva de máquinas de recarga e insumos (pólvora, espoletas, projéteis) sem o devido controle. Hoje, criminosos não apenas compram munição desviada; alguns fabricam a sua própria munição utilizando estojos deflagrados, muitas vezes recolhidos em clubes de tiro ou até desviados de treinamentos policiais.

A Resistência do Lobby e a “Bancada da Bala”

Se o diagnóstico é claro e as soluções técnicas existem (marcação a laser, chipagem, controle rigoroso de lotes, integração de bancos de dados), por que não avançamos? A resposta não está na falta de tecnologia, mas no excesso de interesses.

O Brasil possui um dos lobbies armamentistas mais fortes e articulados do mundo. A indústria de armas e munições, historicamente protegida como um monopólio estratégico, exerce uma influência descomunal no Congresso Nacional. A chamada “bancada da bala” atua não apenas para expandir o mercado, mas ativamente para impedir mecanismos de controle.

Cada vez que se propõe um sistema de rastreabilidade mais rígido, como a marcação individual de munições, que permitiria saber exatamente pontos pelos quais munições estariam sendo desviadas, o lobby reage com narrativas falaciosas. Argumenta que “encareceria o produto para o cidadão de bem” ou que seria “inviável industrialmente”. Curiosamente, esse custo já é pago por órgão públicos.

A resistência a qualquer tipo de controle é ideológica e comercial. Para o lobby, a venda é o objetivo final; o destino do projétil é uma externalidade indesejada, mas aceitável. Há uma recusa sistemática em aceitar que o mercado legal é importante fornecedor do mercado ilegal e parlamentares ligados ao setor bloqueiam projetos de lei que obrigariam a marcação de todas as munições vendidas no varejo.

Essa postura cria um escudo de impunidade. Ao impedir a rastreabilidade, o lobby protege não o “cidadão de bem”, mas aquele que desvia, o traficante de armas e o policial corrupto que vende o seu estoque para o tráfico. A opacidade é um negócio lucrativo que alimenta toda uma rede que lucra às custas da violência. Quanto mais confrontos, maior a demanda.

A Inércia dos Gestores de Segurança

Não podemos, contudo, colocar toda a culpa apenas no Legislativo. Há uma falha gritante de gestão no Executivo, tanto em nível federal quanto estadual. A segurança pública no Brasil ainda é gerida com uma mentalidade de meados do século XX.

Secretários de Segurança e governadores, pressionados por resultados imediatos, focam na “ponta da linha”: a apreensão da droga e da arma na favela, deixando de lado a questão logística. Criar um banco de dados nacional de munições apreendidas exige coordenação, investimento em inteligência e cooperação entre polícias civis, federais e o Exército. É um trabalho de bastidores, sem glamour, que não gera manchetes no dia seguinte, mas que é a única forma de estancar a sangria a médio prazo.

O Exército brasileiro, historicamente responsável pela fiscalização de produtos controlados (SFPC), falhou dramaticamente na sua missão durante o boom armamentista dos últimos anos. A fiscalização foi sucateada enquanto o número de registros explodia. Agora, sob nova direção e com a competência transferida para a Polícia Federal, há uma oportunidade de correção de rumo, mas o passivo já em circulação é um desafio monumental.

É inaceitável que, em 2025, não saibamos a origem da bala perdida que mata uma criança ou que atinge um policial em serviço, ainda mais se essa munição foi adquirida legalmente. A tecnologia para isso existe, o que falta é decisão política para implementá-la e coragem para enfrentar os interesses econômicos que lucram com o caos.

Conclusão: A Quem Interessa o Silêncio?

O cenário descrito sobre a compra de um milhão de munições de fuzil por CACs em apenas seis meses é a prova cabal de que a mudança de governo e a edição de novos decretos, embora passos necessários, não são suficientes para desmontar a estrutura permissiva criada anteriormente. O mercado inercial é forte, e os canais de desvio já estão estabelecidos.

A munição é o elo físico que conecta o fornecedor legal ao homicida. Quando o Estado abre mão de rastrear esse elo, ele torna-se no mínimo omisso. A falta de rastreabilidade não é um acidente; é um projeto de poder e de lucro.

Diante de tudo isso, da morte de agentes públicos, da execução de políticos, do domínio territorial por facções armadas com fuzis alimentados por munições que podem ter sido compradas legalmente e posteriormente desviadas, resta-nos fazer a pergunta incômoda, mas necessária, àqueles que resistem no Congresso e na indústria:

Se o cidadão de bem não tem nada a esconder, e se a indústria preza pela legalidade, por que o medo da rastreabilidade? Por que lutam com tanto afinco para que não saibamos de onde veio a bala que nos mata?

A resposta a essa pergunta talvez revele que, para alguns setores da elite política e econômica brasileira, o sangue derramado nas ruas é apenas um custo operacional aceitável para a manutenção dos seus lucros e privilégios. Eles não querem controle porque o controle exporia as entranhas de um sistema no qual o legal e o ilegal não são opostos, mas sócios.

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