A cor da questão 02/05/2024

O racismo é um costume no Brasil

A democracia não pode ser um sistema no qual apenas ideias majoritárias sejam representadas e tenham espaço. Um dos fundamentos do sistema democrático é a garantia do pluralismo, que deve ser expresso tanto nas representações quanto nas leis e instituições

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Nathalia Oliveira

Socióloga e cofundadora da Iniciativa Negra

Juliana Borges

Coordenadora de Advocacy da Iniciativa Negra

O “costume” do racismo no Brasil é tão basilar no estabelecimento das relações de poder que desloca intencionalmente para a esfera da moralidade temas que afetam de maneira negativa a população pobre e negra de nosso país. Um exemplo recente foi a deliberação da PEC 45/2023 no Senado Federal, no último dia 16 de abril, que aprovou a inclusão, considerando como crime o uso de drogas na Constituição Federal. Ataca-se a liberdade individual e se abre a possibilidade de uma maior criminalização de condutas, o que comprovadamente mata e encarcera a população negra e estruturalmente vulnerabilizada pelas opções racistas de nosso país.

Os bastidores que envolvem essa decisão demonstram que Lula tinha razão quando manifestou preocupação sobre o STF tratar “pautas de costumes”, como drogas e aborto, pois mais uma vez um tema caro para a superação das desigualdades no Brasil aconteceu no mesmo período em que o STF derruba a tese do marco temporal sobre a demarcação de terras indígenas. Decisão que afeta de fato os setores “acostumados” a acumular poder a partir da exploração predatória de terras e de pessoas no Brasil. É também sabido que, de forma expressiva, esses setores estão entre os representados no Congresso Nacional. É importante explicitar que a democracia é mesmo um sistema da maioria. Contudo, é também um sistema que prevê a proteção das minorias. Ou seja, a democracia não pode ser um sistema no qual apenas ideias majoritárias sejam representadas e tenham espaço. Um dos fundamentos de um sistema democrático é a garantia do pluralismo, que deve ser expresso tanto nas representações quanto nas leis e instituições.

Para além da aberração jurídica de aprovação de uma Proposta de Emenda à Constituição que entra em conflito com outras garantias de direitos, como o acesso universal à saúde e o princípio da proporcionalidade da criminalização de condutas imputáveis de penalização, a manifestação de orientação dos líderes que antecederam a votação não guarda nenhuma coerência com a matéria objetivamente tratada no texto do projeto. Pois, enquanto a matéria que estava em análise tratava da inclusão de mais uma conduta na CF já prevista em outras leis, a justificativa dos senadores favoráveis à PEC perpassou por preocupação com tratamentos de usuários de drogas, combate ao crime organizado e enfrentamento da liberação da maconha, matérias que simplesmente não foram tratadas pelo projeto em questão.

Os senadores votaram conscientes de que: a) o tema revisa um entendimento que desconsidera o acúmulo analisado pelo Congresso durante 2002 e 2006 e que teve como resultado a atual lei de drogas, que estabeleceu penas alternativas para usuários de drogas; b) a medida não gera efeito de melhoras nos índices de saúde porque afasta usuários que temem a criminalização; c) há risco de aumento do encarceramento e gastos públicos; d) ignoraram preceitos de liberdades individuais; e) manifestaram o complexo de vira-lata, apontando que o Brasil não tem capacidade de se espelhar em outros países que estão mudando legislações; f) desconsideraram tratados internacionais dos quais somos signatários, demonstrando total descompromisso com a imagem pública do Brasil no cenário mundial.

Ou seja, mais uma vez a votação escancara uma maioria de parlamentares que exercem seus ofícios em absoluto desencontro com os interesses públicos, cinicamente ancorados em apelos moralistas que resultam na opção pela manutenção da política de guerra às drogas em vigor no país. Mais uma contribuição de compromisso com uma guerra às drogas, intensificando seus efeitos e retrocedendo nas garantias individuais e no interesse público, que só encontra coerência para os setores que se beneficiam da manutenção dos privilégios produzidos pelo racismo sustentado pela proibição.

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