O que quer o Consórcio dos governadores do Sul e Sudeste para a Segurança Pública?
O governador Eduardo Leite embarcou em uma canoa característica não apenas do populismo penal, mas dos defensores de um verdadeiro “Estado de Polícia”, com a redução dos mecanismos de controle judicial da ação policial
Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo
Professor titular da Escola de Direito da PUCRS, pesquisador do INCT-InEAC, bolsista de produtividade do CNPq e associado sênior do Fórum Brasileiro de Segurança Pública
Nas últimas semanas, o Cosud (Consórcio de Integração Sul e Sudeste), que reúne os governadores das regiões Sul e Sudeste, veio a público apresentar quatro propostas para o combate à criminalidade. As propostas têm por escopo “ajustes” que deveriam ser feitos no Código Penal e de Processo Penal e na Lei de Execução Penal.
O governador do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite, do PSDB, foi o escalado para apresentar em Brasília e na mídia as propostas, que chamaram a atenção por seu baixo nível de elaboração, levando em conta a necessidade de integrar aquilo que foi apresentado com o arcabouço legal e constitucional e com os princípios que regem a aplicação da lei penal em democracia.
A primeira proposta pretende, nas palavras do governador gaúcho, “o fim do prende e solta”. Propõe uma revisão nos requisitos da legislação para concessão de liberdade provisória em audiências de custódia no caso de crimes graves e quando há reincidência.
Ora, no Brasil, a prisão preventiva é uma medida cautelar de natureza excepcional, que só pode ser decretada em determinadas situações e desde que presentes requisitos legais, previstos no art. 312 do Código de Processo Penal. São eles: (i) a garantia da ordem pública, quando o acusado representa um perigo para a sociedade pela gravidade do delito praticado e o risco de reiteração criminosa; (ii) garantia da ordem econômica, quando houver indícios de que o acusado pode afetar pela sua ação a ordem econômica; (iii) a conveniência da instrução criminal, quando há o risco de que o indiciado possa estar coagindo testemunhas ou destruindo provas; e (iv) garantia da aplicação da lei penal, quando há o risco de que o acusado fuja da Justiça.
Cabe destacar ainda que a legislação brasileira desde 2011 prevê uma série de medidas cautelares alternativas à prisão, que podem ser aplicadas em substituição à prisão preventiva, desde que suficientes para garantir a ordem pública, a ordem econômica, a conveniência da instrução criminal ou a aplicação da lei penal. Essas medidas estão previstas no artigo 319 do Código de Processo Penal Brasileiro, e são o comparecimento periódico em juízo; a proibição de acesso ou frequência a determinados lugares; a proibição de manter contato com pessoas específicas; a proibição de ausentar-se da comarca onde reside, sem autorização do juiz; o recolhimento domiciliar no período noturno e nos dias de folga, quando o acusado tiver residência fixa; a monitoração eletrônica; a suspensão do exercício de função pública ou de atividade econômica; o bloqueio de bens, entre outras medidas.
É importante destacar que essas medidas cautelares têm o objetivo de garantir a eficácia do processo penal, sem a necessidade de recorrer à prisão preventiva, respeitando os princípios da presunção de inocência e da proporcionalidade. O juiz deve avaliar cada caso concreto e escolher a medida mais adequada de acordo com as circunstâncias.
Como se verifica, além da proposta apresentada não ter nenhum embasamento científico ou jurídico, faz referência especificamente às audiências de custódia, quando na verdade a prisão preventiva pode ser decretada em outro momento processual (nos casos em que não há a prisão em flagrante) ou ser relaxada também em qualquer etapa do processo, uma vez que os requisitos para a manutenção de uma prisão cautelar devem ser periodicamente reavaliados.
A segunda proposta pretende atualizar a legislação processual penal sobre os requisitos para abordagens policiais. Nas palavras do governador proponente, “queremos reforçar aos policiais a prerrogativa de realizar abordagens conforme circunstâncias suspeitas. E deixar expresso na legislação que é vedada a atuação com base em preconceitos”.
Fica evidente que a proposta tem como alvo decisões que vem sendo tomadas pelos tribunais superiores, no sentido de exigir dos policiais que haja a chamada “fundada suspeita” para a abordagem policial. O Superior Tribunal de Justiça (STJ) e o Supremo Tribunal Federal (STF), têm consolidado jurisprudência sobre o tema, afirmando que a abordagem policial deve respeitar os direitos fundamentais dos cidadãos e não pode ser arbitrária. Alguns critérios considerados para a fundada suspeita de abordagem policial são:
1. Conduta suspeita objetiva: a polícia pode abordar uma pessoa com base em condutas objetivas que levantem suspeitas razoáveis, como comportamento evasivo, presença em local conhecido por tráfico de drogas, atos explícitos de traficância e outros delitos, entre outros.
2. Informações de inteligência: informações obtidas por meio de investigações policiais, denúncias anônimas ou outros meios que indiquem a possível prática de um crime, e desde que a pessoa abordada corresponda à descrição de um suspeito procurado pela polícia.
Tem havido, portanto, por parte dos tribunais, justamente a preocupação de limitar a discricionaridade e a seletividade da abordagem policial, que, como se sabe, acaba produzindo uma sobrecriminalização de grupos sociais mais vulneráveis e alvos de discriminação. E a consequência da não apresentação dos requisitos mínimos da fundada suspeita para a abordagem invalida as provas produzidas, única forma de garantir a efetividade do controle da atuação da polícia pela via judicial.
A proposta dos governadores do Sul e Sudeste simplesmente ignora esse debate jurisprudencial e suas nuances, e dá total liberdade para as abordagens pela polícia, colocando ao final uma inócua vedação da abordagem com base em “preconceito”, que não terá como ser aferida caso se retire a possibilidade da revisão judicial da legitimidade da abordagem.
A terceira proposta pretende permitir o acesso das polícias às informações de monitoramento eletrônico, independente de autorização judicial, para, segundo a justificativa apresentada, “melhorar a integração, qualificar a atuação policial e as investigações”.
A monitoração eletrônica foi implantada no Brasil na última década, tanto como alternativa à prisão cautelar, quanto como possibilidade de controle no momento da progressão de regime prisional e na prisão domiciliar. Em todos os casos, a monitoração tem sido efetivada mediante a garantia da devida estrutura e acompanhamento, que são efetivados pelo Poder Executivo, e o devido acompanhamento judicial, já que se trata de medida de restrição da liberdade individual.
Dar às polícias livre acesso à monitoração seria como entregar às polícias a administração carcerária, medida que já foi inclusive adotada no Rio Grande do Sul em alguns presídios, mas que o próprio governador Eduardo Leite, depois de quase 30 anos, tratou de afastar. E têm sido as novas polícias penais as responsáveis pela monitoração, com o devido acompanhamento do Poder Judiciário.
A quarta e última proposta é a única que trata de uma mudança no Código Penal, e propõe tornar qualificado o crime de homicídio quando for praticado por ou a mando de organização criminosa. A proposta surpreende pela inocuidade, uma vez que os assassinatos cometidos no contexto dos mercados ilegais já são considerados hediondos em praticamente todos os casos.
Tentando responder às críticas que recebeu pela fragilidade do “pacote” de reformas legais, o governador Leite publicou artigo no jornal O Estado de São Paulo[1], no qual acusa os críticos de fazerem julgamento precipitado de questões complexas. Ora, o que chama a atenção é justamente a baixa qualidade e complexidade das propostas, que pouco dialogam com todo o acúmulo existente, tanto no campo da Criminologia quanto do Processo Penal, a respeito das questões apresentadas.
O próprio governador, no artigo citado, não diz quais são os objetivos das propostas, refere casos absolutamente excepcionais e fora do padrão de atuação do Poder Judiciário em matéria penal, e procura legitimar as proposição não no seu conteúdo e finalidades, mas pelo fato de que o Rio Grande do Sul teria um histórico, no seu governo, de tratamento adequado do tema da segurança, com políticas baseadas em evidências e capazes efetivamente de reduzir a criminalidade e a insegurança pública, reunidas em torno do Programa RS Seguro e da qualificação da atuação das polícias.
De fato, o governador Eduardo Leite tem um histórico elogiável no campo das políticas de segurança pública, tanto quando foi prefeito de Pelotas quanto como governador. O que chama a atenção é ter embarcado em uma canoa característica não apenas do populismo penal, mas dos defensores de um verdadeiro “Estado de Polícia”, com a redução dos mecanismos de controle judicial da ação policial, num contexto em que a violência abusiva e a seletividade das abordagens ainda precisam ser enfrentadas, para que possamos dar efetividade a um verdadeiro Estado Democrático de Direito para todos.
O medo e a insegurança pública no Brasil têm servido como plataforma política para todo tipo de oportunismos, especialmente dos que se situam no campo do chamado bolsonarismo. Que um governador ligado ao PSDB, e com realizações efetivas na redução da violência em seu estado, assuma a linha de frente na chancela de propostas como estas, diz muito sobre a fragilização do campo democrático na defesa dos direitos e garantias fundamentais, que já contou e conta para a sua defesa com figuras importantes, como José Gregori, Mário Covas, Franco Montoro, Miguel Reale Jr. e José Carlos Dias, todos ligados ao velho PSDB.
O caminho escolhido pelos atuais defensores de regimes autocráticos não é mais o do golpe contra as instituições, mas sim o do rebaixamento das garantias constitucionais e dos controles institucionais. Propostas como as apresentadas poderiam ser vistas como a figura do lobo em pele de cordeiro, mas são explícitas demais para iludir qualquer aluno de primeiro ano de Direito. Possivelmente não terão tramitação tranquila, pela sua fragilidade legal, mas poderão servir como argumento no debate eleitoral. No entanto, ceder à agenda do que há de pior no debate das reformas penais significa abrir mão de ser de fato uma alternativa à extrema-direita, na defesa de regras imprescindíveis para a ordem democrática. Vamos de mal a pior.
[1] https://www.estadao.com.br/opiniao/espaco-aberto/rigor-e-evidencias-contra-o-crime/