Retrospectiva 2021

O que nos ensina o Big Brother Policial que envolve a caçada a Lázaro Barbosa*

Duas questões atraem a atenção: como um indivíduo em fuga pode estender sua ação por tanto tempo e diante de tal força policial? Como rotular esse indivíduo? Não faltam palpites

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Cassio Thyone

Graduado em Geologia pela UNB, com especialização em Geologia Econômica. Perito Criminal Aposentado (PCDF). Professor da Academia de Polícia Civil do Distrito Federal, da Academia Nacional de Polícia da Polícia Federal e do Centro de Formação de Praças da Polícia Militar do Distrito Federal. Ex-Presidente e atual membro do Conselho de Administração do Fórum Brasileiro de Segurança Pública

*Texto originalmente publicado na edição número 94 do Fonte Segura, em 23 de junho de 2021

No último dia 9 de junho, um triplo homicídio cometido contra os membros de uma família (o pai e dois filhos, mortos a facadas),
seguido de um sequestro da matriarca, deu início a uma perseguição que já dura mais de duas semanas e que envolve duas unidades da federação: Goiás e Distrito Federal. O crime ocorreu na zona rural da cidade de Ceilândia e desde então uma série de outras ocorrências passou a ter como cenário a região do entorno do DF, nas localidades de Cocalzinho, Edilândia e Girassol.

Três dias depois, o corpo da mulher, até então considerada desaparecida, foi encontrado num córrego localizado a 8km da chácara de onde fora sequestrada. O corpo, que estava despido, apresentava, além da lesão fatal produzida por disparo de arma de fogo, feridas perfuroincisas, produzidas por arma branca, nas nádegas, coxas e pernas. Informações preliminares indicam também lesões associadas à amputação de pelo menos uma orelha.

Inicialmente a polícia do DF optou por divulgar as fotos de que dispunha para que denúncias pudessem ajudar a localizar o suspeito pelos crimes. Estabeleceu-se assim uma busca que rapidamente tomou proporções cada vez maiores, deslocando a zona-alvo para o entorno do DF, já no estado de Goiás, onde novas ações do fugitivo foram empreendidas.

As ocorrências incluem, desde então, segundo as informações obtidas pela mídia, pelo menos sete invasões a propriedades rurais, roubos, furtos, cárcere privado, três tentativas de homicídios, uma troca de tiros com policiais (um dos quais ficou ferido), uma sede de propriedade incendiada, dois roubos de veículos, um dos quais foi abandonado totalmente incendiado.

O suspeito, identificado como Lázaro Barbosa, de 32 anos, teve sua vida pregressa revelada e todo o país passou a conhecer o suspeito. Segundo essas informações, Lázaro seria o autor de dois homicídios no município baiano de Barra do Mendes, no ano de 2008. Após uma fuga que durou dez dias, ele teria sido preso e tempos depois fugido da cadeia onde esteve preso em Irerê-BA. Já no Distrito Federal, Lázaro incluiu outros crimes em sua ficha: estupro e roubo, ficando detido na prisão da Papuda, de onde saiu graças à progressão para o regime semiaberto.

No entorno, continuou a envolver em outros delitos até ser novamente detido na cidade de Águas Lindas, em Goiás, de onde novamente fugiu de uma cadeia em 2018, passando a viver na região onde hoje é procurado. As investigações que se intensificaram desde o início de sua perseguição levaram a apontá-lo como autor ou suspeito de outros crimes, em especial um estupro em Ceilândia, e um outro homicídio ocorrido no estado de Goiás, entorno do DF, cinco dias antes da chacina da família na zona rural de Ceilândia.

Não demorou para que a tentativa de busca e captura por Lázaro ganhasse dia a dia espaço na mídia. Policiais foram mobilizados, incluindo as forças das polícias militar e civil das duas unidades da federação envolvidas, além da Polícia Rodoviária Federal, Polícia Federal, Polícia Penitenciária de Goiás, e, mais recentemente, da Força Nacional, estes últimos ainda aguardando os trâmites burocráticos. Já são mais de 270 policiais envolvidos nas buscas, um contingente considerado bastante alto para esse tipo de operação. Unidades especializadas também prestam apoio: COT da Polícia Federal, Operações Especiais da PMGO e da PMDF, Inteligência das polícias envolvidas.

Recursos e tecnologias incluem cães farejadores, cavalaria, pelo menos três aeronaves (helicópteros) e drones, estes últimos
equipados inclusive com câmeras de infravermelho. Duas discussões atraíram a atenção de quem acompanha o caso: a primeira é como um indivíduo em fuga pode estender sua ação por tanto tempo e diante de tamanha força policial. A segunda: como rotular esse indivíduo. Não faltam palpites. Para a primeira questão é preciso ter o entendimento claro, ressaltado por inúmeros especialistas, de que a operação é muito mais complexa do que o senso comum e popular alcançam. As dificuldades incluem: a grande extensão da área delimitada pelo cerco, as características físicas da região, que compreendem áreas rurais, com campos e vegetação de cerrado, além de matas ciliares
relacionadas às drenagens, relevo acidentado, ravinas e grotas. Soma-se a essas características a familiaridade que o suspeito tem com a região e todo o terreno. Segundo informações, ele teria habilidades de um típico “mateiro”, conhecedor de técnicas que o ajudam a se deslocar e a se manter no ambiente em que está sendo caçado.

Mas, além disso, como explicar seu sucesso? Uma das questões que apareceram está relacionada à maneira como as diferentes forças policiais estão trabalhando. Imaginar uma total integração e um ambiente harmônico de trabalho soa como uma expectativa um tanto surreal. A mesma dificuldade que sempre existiu na esfera da segurança pública brasileira certamente se manifesta aqui, portanto se estendendo do macro para o micro. Ruídos no fluxo das informações, dificuldade de comando único, vaidades institucionais alimentam essa avaliação.

A própria espetacularização do evento já foi alvo de críticas. O Big Brother policial que se estabeleceu, manifestado por selfies de policiais nas redes, alcançou até os representantes do mais alto escalão político das duas unidades da federação. Trocas de farpas entre os dois governadores apareceram na mídia, alimentando ainda mais a fogueira de vaidade e coleção de declarações infelizes que em nada ajudam nas operações. Outras informações inusitadas, cujas comprovações sequer sabemos se serão alcançadas, surgem aqui e ali em meio a tantos desdobramentos: falso policial federal preso; polícia acusada de tortura e ameaça contra a mulher de Lázaro, polícia envolvida em intolerância religiosa contra templos, enfim, um verdadeiro show de horrores.

Até o presidente da República e seu vice já se manifestaram. O primeiro, aproveitando para enaltecer a utilidade da disseminação das armas de fogo. Ressalte-se que armas e munições roubadas por Lázaro em chácaras invadidas serviram até aqui para realimentar seu arsenal, aumentando seu poder de fogo e certamente colaborando na perspectiva de prolongamento de sua fuga, além de incrementar o risco quanto às possibilidades de desfecho.

A segunda questão diz respeito à forma pela qual vamos definir, caracterizar e denominar Lázaro. Enfim, que rótulo devemos
empregar. Ele já foi chamado de serial killer, spree killer, maníaco, psicopata, homicida, criminoso, dentre outros. É importante entender que uma definição adequada passa por questões técnicas, análises psicológicas, psiquiátricas, criminológicas e investigativas. Mesmo a definição de um homicida serial encontra diferentes correntes na literatura acadêmica. Não é exclusivamente o número de vítimas que define esse termo. Vejamos alguns dos conceitos empregados:

Seral killer: indivíduo que mata três ou mais pessoas em eventos distintos, com períodos de calmaria entre os casos. A motivação
envolve aspectos peculiares de sua personalidade.
Spree killer: alguém que produz em uma única ocorrência duas ou mais vítimas de homicídio em um curto período de tempo e em
vários locais diferentes. Vítimas são aleatórias. Ex.: caso que ocorreu na Noruega, envolvendo Anders Behring Breivik, que matou
77 pessoas em um único dia.

Se pensarmos em Lázaro no evento que resultou na morte da família, ou apenas no período que dura a caçada, vamos encontrar semelhanças com um spree killer (dois locais de crime, quatro vítimas). Mas quando analisamos os outros homicídios a ele atribuídos, e embora o lapso grande de tempo entre eles, somos levados a pensar num serial killer.

O que realmente importa é que neste momento NÃO é possível fazer essa definição. O próprio diagnostico de psicopatia (Transtorno de Personalidade Antissocial ou TPAS) somente pode ser dado por profissionais como psiquiatras e psicólogos forenses. As questões comportamentais que envolvem, por exemplo, a real motivação dos crimes ainda será objeto de análise.

Sobre a personalidade de Lázaro, um laudo criminológico produzido em 2013, quando ele se encontrava preso na Papuda, nos traz algumas indicações importantes: “ansiedade e tensão; ausência de mecanismos de controle; dependência emocional; dificuldade em canalizar e expressar emoções; impulsividade; instabilidade emocional; possibilidade de ruptura do equilíbrio; preocupações sexuais; e sentimentos de angústia”. O laudo ainda afirma que Lázaro apresenta “histórico de uso abusivo de drogas e álcool, perturbações psíquicas, instabilidade profissional, interrupção no aprendizado escolar e profissional, internação em orfanatos e fugas de casa.”

Isoladamente ainda deverão ser confrontados elementos de um comportamento que apareceram nas recentes ocorrências, tais como: despir as pessoas capturadas, ordenar que também fumem drogas, pedir que se declarem a seus cônjuges, etc. As próprias lesões da mulher encontrada morta, em especial as mutilações (ainda não definidas se produzidas em vida ou após a morte), servirão como elementos na busca desta que é, sem dúvida, uma das nossas angústias em casos como esse. No fundo o que queremos entender é a própria natureza humana.

 

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