Múltiplas Vozes 30/11/2022

O que fazer com as armas de fogo?

Como a desregulamentação (ou revogaço) não é o suficiente, será preciso instituir uma regulamentação que incida sobre o controle e a posse da arma de fogo

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Dijaci David de Oliveira

Doutor em sociologia, professor da Faculdade de Ciências Sociais da Universidade Federal de Goiás (UFG). Atualmente faz o pós-doutorado em sociologia no Instituto Universitário de Lisboa (ISCTE-IUL)

Os atos normativos sobre as armas de fogo criados no Brasil nos últimos anos permitiram a importação, a venda, a compra, a posse, ampliação de coleções, assim como de criação de clubes de tiros e a facilidade de acesso a munições. Dentro dos marcos jurídicos leva-se tempo para a sua total eliminação. Por que reduzir ao máximo o acesso às armas? Simples, sabidamente elas produzem mais danos que garantias de segurança. Estudos realizados em várias partes do mundo demonstram que o acesso a mais armas aumenta o percentual de suicídios e homicídios por armas de fogo e tem pouco efeito sobre a garantia de segurança. Logo, para o bem de todos e todas, o melhor caminho é trabalhar pela sua eliminação.

Como é possível realizar isso? Pelos institutos implementados a partir do advento do Estatuto do Desarmamento, havia a possibilidade de entrega voluntária e a indenização. Isso ocorreu muito com armas de pouco valor, caseiras ou velhas, ainda que tenham sido entregues algumas armas mais sofisticadas e caras. Nem por isso a iniciativa deixou de ser importante. No entanto, considerando quem comprou armas nos últimos anos, em um contexto de polarização, de construção de mundos paralelos e de teorias da conspiração, há menos possibilidades de sucesso em novas campanhas de entrega de armas. O que fazer?

A desregulamentação, por meio do chamado “revogaço” será importante, mas se não houver consequência retroativa, terá um efeito pontual. Isto é, as normas incidiriam sobre o estágio atual, portanto, voltariam a impor restrições para novas aquisições e instituir e/ou renovar penalidades sobre práticas ameaçadoras. Enfim, até aqui haverá uma baixa incidência sobre a propriedade. As armas continuarão nas mãos de quem as adquiriu.

Como a desregulamentação (ou revogaço) não é o suficiente, será preciso instituir uma regulamentação que incida sobre o controle e sobre a posse do bem, isto é, da arma de fogo. Para isso, podem-se seguir duas linhas.

Para controlar e mapear, um caminho possível é estabelecer a declaração obrigatória e periódica das armas, por exemplo, na declaração anual de imposto de renda (com acesso assegurado às instituições pertinentes de controle e fiscalização de armas). Esse dado permitirá ter uma base única e nacional de todas as armas. Essa base poderá ser cruzada com outras já existentes (mas que, por conta da má gestão, possuem limitações) para se descobrir possíveis falhas ou omissões entre elas. O que não for declarado torna-se ilegal e, portanto, passível de multa (por sonegação da informação) e de criminalização, pois, se não declarada, a arma sonegada seria um produto ilegal.

Uma segunda linha de regulamentação é instituir a incidência de um pagamento (por exemplo, taxa de licenciamento) para a manutenção do direito de posse da arma, tal como ocorre com carros, motos e outros (aliás, deve-se sugerir o mesmo para lanchas e jatinhos). Será um problema criar um outro imposto/taxa? Isso significa convalidar o direito de possuir armas? Corrobora o sentido do discurso de autodefesa?

O discurso comum é que todo imposto é um problema. Não é verdade. Seria problemático se ele recaísse sobre áreas sensíveis e repercutisse por meio de encarecimento da vida das pessoas pobres. Não é o caso. A cobrança incidirá mais especificamente sobre as pessoas mais ricas (os maiores detentores de armas legais). Deve-se reconhecer que isso pode favorecer o aumento de armas clandestinas. Sim, mas isso não exclui a necessidade do controle.

Cobrar uma taxa de licenciamento anual não significa convalidar o discurso de que “todos devem ter armas”. Pelo contrário, reforça o discurso contra as armas, pois torna a posse mais onerosa e desinteressante. Tampouco corrobora a ideia de que ter uma arma é importante para a chamada autodefesa do intitulado “cidadão de bem”. É uma oportunidade para se que desfaça da arma, já que ela se torna cara e dispendiosa.

Enfim, o que fazer com o dinheiro arrecadado? Sabe-se que muitas áreas são importantes e demandam recursos. O discurso mais recorrente é repassar para as áreas-chave, tais como a segurança e saúde, já que os danos das armas incidem diretamente sobre seus campos de atuação. Para se ter uma ideia, de acordo com o Instituto Sou da Paz,  “em 2020, ao identificar todas as internações relacionadas à violência armada, os custos ressarcidos pelo SUS totalizaram R$ 37,8 milhões”. Ou seja, a “liberdade” de ter armas custa caro para o Brasil. Todavia, seria importante realizar uma inversão de prioridade. Ao invés de privilegiar essas áreas, pode-se pensar em quem mais sofre com as mortes por armas de fogo, os jovens. Então um caminho possível seria utilizar todo o dinheiro arrecadado em políticas para a juventude. Por exemplo, assegurando a ampliação do acesso à cultura, fortalecendo a formação e a capacitação e melhorando as políticas de empregabilidade. Não é de hoje que se sabe que investir em políticas sociais reduz a violência, salva vidas e melhora a qualidade de vida para todos e todas.

 

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