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O que é invisível? É aquilo que a gente não vê. Não vê porque não existe, ou porque não enxergamos

Nós, do Instituto Liberta, estamos convidando pessoas maiores de 18 anos que sofreram alguma violência na infância ou adolescência a romperem o silêncio e virem com a gente na primeira passeata virtual do mundo, a #AGORAVCSABE

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Luciana Temer

Advogada, professora da PUC-SP e diretora-presidente do Instituto Liberta

Há cinco anos presido o Instituto Liberta, que tem como missão conscientizar o Brasil sobre o tamanho e a importância de olharmos e enfrentarmos a violência sexual contra crianças e adolescentes. Uma jornada de cinco anos que iniciei achando que entendia esse fenômeno, afinal, fui delegada de polícia e atuei por cinco anos na Delegacia de Defesa da Mulher de Osasco, secretária de Juventude, Esporte e Lazer do Estado de São Paulo (a Fundação Casa, à época Febem, era ligada à pasta) e secretária de Assistência e Desenvolvimento Social do município de São Paulo. Enfim, tive a oportunidade de lidar de perto com questões de vulnerabilidade social e violência e, mesmo assim, enxergava a violência sexual contra crianças e adolescentes como uma questão pontual e residual. Em minha defesa, tenho o fato de que, em 2017, quando criamos o Instituto Liberta, os dados sobre estupro de vulnerável ainda não eram publicados no Anuário Brasileiro de Segurança Pública. Hoje, graças a ele, sabemos que são mais de quatro meninas estupradas por hora no Brasil.

O crime de estupro de vulnerável foi inserido no Código Penal pela Lei 12.015/09 e acontece quando uma pessoa maior de 18 anos se relaciona sexualmente com alguém menor de 14 anos, com alguém que não possa oferecer momentaneamente resistência ou não tenha discernimento para consentir em razão de enfermidade ou deficiência mental. Antes dessa tipificação específica, que coloca a idade como fator objetivo de identificação de violência, havia já a previsão legal de presunção de violência, mas que poderia ser discutida.

Em 2019, pela primeira vez, o estupro de vulnerável aparece de forma isolada no Anuário (antes o dado era de estupro em geral) e é nesse momento que podemos enxergar que 53,8% de todos os estupros registrados foram contra menores de 13 anos. Esse número sobe para 57,9% no Anuário de 2020 e para 60,6% no de 2021.

Apesar da publicação dos dados sobre esse crime, ele ainda continua invisível. As pessoas ficam chocadas quando eu falo sobre o tamanho dessa violência, quem é o criminoso e as circunstâncias nas quais normalmente ele acontece. Precisamos tirar a sociedade brasileira dessa cegueira involuntária, porque enxergar o problema não acaba com ele, mas dá início ao processo de mudança. Tomemos a violência contra a mulher como exemplo. Quando fui delegada de polícia, há 30 anos, não havia lei Maria da Penha, aliás não havia tipificação específica para violência doméstica. Também não havia crime de feminicídio nem Casa da Mulher Brasileira, nem cotas para mulheres candidatas, nem tantas outras leis e políticas públicas que hoje buscam proteger e equiparar a mulher em direitos. Isso só foi possível graças aos movimentos feministas que, ao longo de muitos anos, foram inserindo essa pauta na sociedade. Não foi um processo fácil. Costumo citar o fato de que nos meus cinco anos como delegada nunca registrei uma ocorrência de uma mulher “rica”. Violência contra mulher, aos olhos da sociedade, era coisa de “gente da periferia”. Violência nunca é um assunto “bonito”, mas hoje fala-se com naturalidade e frequência cotidiana sobre violência contra mulher e isso é fundamental para o seu enfrentamento, pois passa a haver pressão social por mudança.

Então… violência sexual contra crianças e adolescentes está no mesmo lugar que a violência contra a mulher estava há 30 anos. Só a militância dos direitos das crianças fala disso, é um assunto “feio” e “periférico”. Invisível. Precisamos tirar essa violência da invisibilidade. Por isso, nós, do Instituto Liberta, estamos convidando pessoas maiores de 18 anos que sofreram alguma violência na infância ou adolescência a romperem o silêncio e virem com a gente na primeira passeata virtual do mundo, a #AGORAVCSABE. Como funciona? Convidamos você primeiro a entrar no site agoravcsabe.com.br e entender se foi vítima. Sei que essa fala parece estranha, afinal, uma pessoa deveria saber se foi vítima, não? Não. Nossa sociedade está acostumada a pensar em violências extremas, como o estupro, e nós estamos chamando todo mundo a reconhecer violências sofridas mesmo que sutis, que não implicam nem contato físico, mas que são crimes previstos no Código Penal e que não podemos admitir. Acreditamos que as violências escalam quando uma sociedade é permissiva com as “pequenas” e está de alguma forma autorizando também as “grandes”. Uma vez que reconheceu que foi vítima, grave, no site mesmo, o grito da passeata: “Violência sexual contra crianças e adolescentes é uma realidade. Eu fui vítima. E agora você sabe.” Sabemos que o silêncio é o maior aliado desse crime. Quando a vítima se constrange e se cala, o criminoso está sempre autorizado a praticá-la. Por isso, nós, pessoas adultas, vamos romper o silêncio: vamos ser a última geração que se calou sobre a violência sexual vivida na infância ou adolescência.

A primeira etapa da passeata saiu no dia 18/05, com todo mundo junto passando pela tela com o rosto dentro de bolinhas e falando ao mesmo tempo. Esse levante virtual não é sobre a história de ninguém, mas sobre a força do coletivo. Até agosto teremos mais 3 etapas da passeata, uma por mês.

Ao final, quando tivermos milhares de pessoas conosco, iniciaremos nosso advocacy junto aos candidatos e candidatas à presidência e governos deste país. Apesar de estarmos falando sobre crime, nossa defesa é por políticas de educação. É urgente falarmos sobre prevenção com crianças pequenas e sexualidade saudável com adolescentes, e o espaço primordial para essa conversa são as escolas. Por quê? 67% dos estupros acontecem em casa. 86% são praticados por pessoas próximas. Precisamos dizer mais alguma coisa?

 

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