O que a Lei Orgânica das Polícias Militares tem a ver com o Guarujá?
A LOPM precisa ser aperfeiçoada, pois não contribui com a necessária modernização das corporações e com o enfrentamento de padrões operacionais calcados no uso abusivo da força policial, como visto no Guarujá/SP
Arthur Trindade M. Costa
Professor de sociologia da Universidade de Brasília e Associado Sênior do Fórum Brasileiro de Segurança Pública
David Marques
Coordenador de projetos do Fórum Brasileiro de Segurança Pública e doutor em Sociologia pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar)
Tramita no Congresso Nacional o Projeto de Lei 3.045 de 2022, que institui a Lei Orgânica Nacional das Polícias Militares (PM) e dos Corpos de Bombeiros Militares (CBM) dos Estados, do Distrito Federal e dos Territórios. O Projeto de Lei já foi aprovado na Câmara dos Deputados e agora está sendo discutido no Senado Federal.
Sem dúvida, o projeto de lei é bem-vindo, uma vez que ainda hoje as Polícias Militares e os Bombeiros Militares são regidos por dois dispositivos legais criados no tempo do regime militar: o Decreto Lei 667/1969 e o R-200 de 1983. Já passava da hora de atualizar a legislação.
Em função da complexidade e do impacto, a nova legislação demanda uma ampla discussão que inclua, além das polícias, segmentos da sociedade civil e outros operadores do Direito. De forma geral, as discussões devem contemplar diversos aspectos, tais como fortalecimento da democracia, impacto federativo, eficiência e profissionalização da atividade policial.
Apesar dos méritos, o PL 3.045/22 traz alguns pontos preocupantes. O primeiro deles, mais evidente, é invadir as competências de órgãos da área ambiental. O parágrafo 3º do artigo 2º inclui as Polícias Militares e os Bombeiros Militares no Sistema Nacional do Meio Ambiente, o SISNAMA. Da forma como está redigido o PL, as polícias seriam atores com poder de definir e vetar políticas ambientais, o que claramente extrapola suas competências. Em função disso, esse dispositivo foi destacado para ser debatido em separado na Comissão do Meio Ambiente do Senado Federal.
A nova lei precisa enfatizar a necessidade de profissionalização e especialização da atividade policial, para a maior eficiência na entrega de seus serviços à população, dentro de uma doutrina de polícia democrática, racionalmente organizada, eficiente e respeitosa dos direitos humanos dos seus integrantes e da população em geral. Para isso, é necessário induzir mudanças tanto no mecanismo de gerenciamento de seus recursos humanos e materiais, como nas estruturas de controle e supervisão da atividade policial. No mesmo sentido, também é necessário atualizar o sistema de formação e treinamento, introduzindo novos currículos e procedimentos operacionais.
Entretanto, o artigo 15 prevê, em seu inciso I, a exigência de bacharelado em Direito para o ingresso nos quadros de Oficiais de Estado-Maior das PM e BM. O dispositivo vai na contramão das demais polícias no mundo, que têm buscado profissionalizar seus membros com saberes próprios das atividades policiais. A formação jurídica certamente pode contribuir para o desempenho de algumas atividades, assim como a formação em Gestão Pública, Tecnologia da Informação e Psicologia. Contudo, esse tipo de formação não é exigido dos policiais militares.
Também na contramão da profissionalização, o parágrafo 4º do artigo 15 prevê a possibilidade de quadros de oficiais e praças temporários, contratados por tempo determinado ao invés de carreiras administrativas, como ocorre em várias polícias de outros países. A proposta reafirma a relutância de alguns oficiais das polícias militares em aceitar a presença de carreiras civis dentro da instituição. Ao invés disso, preferiram copiar o modelo adotado pelas Forças Armadas.
Ampliar a participação das mulheres em todas as carreiras e espaços da sociedade tem sido o esforço de gerações de mulheres e homens. Combater a discriminação e a violência de gênero fazem parte desse esforço. Lutar pela igualdade salarial e de oportunidades também. Combater o assédio sexual e moral é imperativo. Para que isso aconteça é preciso assegurar a presença de mulheres nas carreiras policiais. Uma das estratégias mais frequentes é assegurar cotas mínimas de ingresso para mulheres.
O parágrafo 6º do artigo 15 indica que “fica assegurado, no mínimo, o preenchimento do percentual de 20% (vinte por cento) das vagas nos concursos públicos por candidatas do sexo feminino, na forma da lei do ente federado, observado que, na área de saúde, as candidatas, além do percentual mínimo, concorrem à totalidade das vagas”.
A redação dá margem a interpretações divergentes. O percentual de 20% pode ser como teto, como já acontece em alguns estados que adotam cotas. Nesses casos, as cotas de 20% transformam-se em barreiras de ingressos a um número maior de mulheres nas carreiras policiais. Não parece que esse é o espírito da lei. Por isso, cremos que vale a pena aperfeiçoar a redação.
O debate sobre uma nova lei orgânica das polícias militares não pode desconsiderar seus impactos nas relações federativas. Afinal de contas, embora regidas por legislação federal, as polícias militares são organizadas e mantidas pelos estados.
As polícias, embora um pouco ausentes das discussões sobre a federação brasileira, sempre foram instituições centrais para se pensar a autonomia federativa dos estados membros ou a concentração de poderes no governo federal. Durante os períodos autoritários, as polícias estaduais foram submetidas ao controle federal. Portanto, não se tratava de cooperação, senão de submissão dos estados às diretrizes dos governos federais. Nos períodos republicanos, os estados gozaram de grande autonomia para organizar e controlar suas polícias, no entanto a cooperação intergovernamental na área de segurança pública tem sido rara e intermitente. Em boa medida, isso se deveu à relutância dos governos federais em criar mecanismos institucionais de incentivo à cooperação entre as polícias.
Só a partir da década de 1990 que essa situação começou a mudar, com a criação da Secretaria Nacional de Segurança Pública e do Fundo Nacional de Segurança Pública, destinados a coordenar e induzir ações na área. Mais recentemente criou-se o Sistema Único de Segurança Pública (SUSP) para articular as ações dos diferentes atores federais, estaduais e municipais. A nova lei orgânica precisa contemplar essas inovações que visam melhorar a articulação do campo da segurança pública.
Ao analisar separadamente a Lei Orgânica das Polícias Miliares e a Lei Orgânica das Polícias Civis, que deverá ser apresentada em breve, corre-se o risco de perpetuar-se a desarticulação que historicamente assola o campo da segurança pública no Brasil. O risco aumenta quando o debate desconsidera aspectos importantes previstos no Sistema Único de Segurança Pública.
O parágrafo 5º do artigo 29 prevê a publicação, pelo comandante-geral das Polícias Militares e Bombeiros Militares, de relatório anual cujo conteúdo está discriminado nos incisos I a V. O Projeto de Lei desconhece que já existem indicadores previstos na Lei do SUSP, nos termos dos incisos V a IX do artigo 36 da normativa. É preciso padronizar conteúdos e explicitar que o sigilo não se aplica aos procedimentos gerais de interação com a população como os Procedimentos Operacionais Padrão.
Ainda com relação aos impactos federativos, o PL repete a estrutura de carreiras vigente das Polícias e Bombeiros Militares. Portanto, comandantes e os governadores não poderão discutir reformas nas carreiras e valorização profissional. Se o PL for aprovado como está, o espaço para criação de novas estruturas de carreiras continuará bloqueado, sobrecarregando a estrutura militar e dificultando as políticas de valorização profissional previstas na Constituição Federal e na Lei do SUSP.
Importante ainda comentar acerca da tentativa de reativar um vínculo longínquo das Polícias Militares com o Exército, por meio da Inspetoria Geral das Polícias Militares (IGPM), que tem seu papel fortalecido pelo PL, conforme seu Art. 28º, ao invés de rompê-lo para se adequar ao espírito do ordenamento legal nascido com a Constituição Cidadã.
Por fim, os casos recentes da Operação Escudo (com ao menos 13 mortos confirmados), desencadeada pela Polícia Militar do Estado de São Paulo após a morte do soldado Reis, da Rota, e as operações da Polícia Militar da Bahia (19 mortos), reforçam a importância de aspectos finalísticos da atuação policial que não foram adequadamente tratados pela LOPM. Embora preveja, no Art. 3º, o princípio do uso racional da força e uso progressivo dos meios, e, no Art. 42º, estabeleça que o uso comedido e proporcional da força pelos agentes da segurança pública deve ser pautado nos documentos internacionais de proteção aos direitos humanos de que o Brasil seja signatário, a LOPM não avança nos mecanismos necessários para enfrentar os padrões operacionais e opções institucionais existentes em diversas corporações que não se coadunam aos princípios mencionados. Sintomático é ainda que, no Congresso, tanto a base de apoio das polícias quanto representantes do governo reconheçam que esse é um tema a ser considerado como princípio, mas que, na prática, não passa de princípio. Ao não o detalhar, a LOPM torna-o uma espécie de acordo tácito para que o tema não trave o debate.
Portanto, o PL da LOPM ora em discussão não aproveita a oportunidade de tocar efetivamente em pontos nevrálgicos da conformação e dos padrões de atuação das polícias militares, não aperfeiçoando estruturas institucionais, carreiras, mecanismos de ingresso e progressão, de valorização profissional, de promoção da diversidade e de harmonização das relações federativas, que, em suma, não estão plenamente conectadas com as necessidades contemporâneas da segurança pública no Brasil. Em um exemplo, o PL em nada contribui para que operações policiais militares tão letais, como as vistas na Bahia e no Guarujá, sejam convertidas em ações de segurança pública que realmente tenham algum impacto na desorganização das dinâmicas criminais organizadas do país, ao mesmo tempo em que protegem a vida de policiais militares, como o Soldado Reis.