O Princípio da Presunção de Inocência e a adoção de critérios objetivos para distinção de uso e tráfico de drogas
Para que a adoção de critérios objetivos de quantidades para diferenciar as condutas de tráfico e uso seja efetiva, é essencial que venha acompanhada de medidas para garantir a aplicação do princípio constitucional da presunção de inocência
Natalia Maciel
Assistente de pesquisa no Ipea, mestre em Sociologia e Antropologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro
Milena Soares
Técnica de desenvolvimento e administração do Ipea, mestre em Políticas Públicas pela Australian National University
Em maio de 2023, o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – Ipea – publicou o relatório da pesquisa “Critérios Objetivos no Processamento Criminal por Tráfico de Drogas: natureza e quantidade de drogas apreendidas nos processos dos tribunais estaduais de justiça comum”[1], coordenada pelas autoras deste artigo, no qual são apresentadas diversas análises sobre natureza, quantidade e métodos de perícias de drogas em processos dos tribunais estaduais de justiça comum.
A partir dos dados analisados, a pesquisa apresentou duas recomendações de políticas públicas: a primeira foi a elaboração de protocolo, a ser observado na feitura dos laudos periciais preliminares e definitivos, com definição de padrões de pesagem e indicação obrigatória da massa líquida do material apreendido, bem como definição de métodos seguros para aferição da natureza das substâncias e obrigatoriedade de indicação dos métodos empregados. A segunda foi que os agentes públicos considerem adotar parâmetros objetivos para definir quantidades de drogas para presunção do porte para uso pessoal. Neste artigo, destacamos algumas questões relativas à segunda recomendação e seus entrelaçamentos com o princípio de presunção de inocência.
Na atual Lei de Drogas, há intersecção das condutas descritas nos crimes de porte para uso pessoal (art. 28) e de tráfico (art. 33). Ambos compreendem os verbos “adquirir”, “guardar”, “ter em depósito”, “transportar” e “trazer consigo”. O enquadramento em um ou outro tipo penal depende, portanto, da finalidade atribuída à conduta: se para consumo pessoal, art. 28; se para tráfico, art. 33. A distinção é relevante porque o tráfico é punido com pena de reclusão e multa, enquanto o uso é punido com penas alternativas.
Tendo em vista que o enquadramento no art. 28 seria mais benéfico aos réus, a presunção de porte para uso deveria ser a regra na análise dos casos concretos, como decorrência do princípio constitucional de presunção de inocência. Esse assunto também está sendo objeto de análise no julgamento do RE 635.659, em que o ministro Gilmar Mendes declarou em seu voto que “a presunção de não culpabilidade – art. 5º, LVII, da CF – não tolera que a finalidade diversa do consumo pessoal seja legalmente presumida” e, portanto, seria ônus da acusação produzir os indícios que levem à conclusão de que a destinação não era o consumo pessoal.
Na contramão do entendimento acima, observamos, na leitura dos autos processuais, diversas decisões no sentido de que caberia ao réu fazer prova de que a destinação da droga era o consumo pessoal, afastando do Ministério Público a responsabilidade de provar a finalidade de tráfico[2]. Também foi comum o entendimento de que a palavra do réu não é prova suficiente da intenção de uso.
O art. 28, § 2º, da atual Lei de Drogas prevê que para determinar se a droga era destinada ao consumo pessoal, “o juiz atenderá à natureza e à quantidade da substância apreendida, ao local e às condições em que se desenvolveu a ação, às circunstâncias sociais e pessoais, bem como à conduta e aos antecedentes do agente”. Entretanto, o julgamento desses critérios é discricionário, pois não há parâmetros objetivos de referência.
No universo da pesquisa, a lógica de presunção de porte para tráfico fica visível na predominância de processos criminais relacionados a apreensões de pequenas quantidades de drogas. Em muitos casos, as quantidades eram compatíveis com padrões de uso, tomando-se como referência Nota Técnica do Instituto Igarapé (2015), que sustenta que o porte de 25 a 100 gramas de cannabis e/ou de 10 a 15 gramas de cocaína poderia ser presumido para consumo próprio.
Partindo exclusivamente destes parâmetros, em um cenário conservador, em que o porte de 25 g de cannabis e de 10 g de cocaína seria considerado compatível com a finalidade de uso, teríamos que 31% dos réus processados por tráfico de cannabis e 34% dos réus processados por tráfico de cocaína, no Brasil, poderiam ser presumidos usuários. No cenário menos conservador, com limites de 100 g para cannabis e de 15 g para cocaína, os percentuais seriam de 51% e 40%, respectivamente.
Os dados indicam que há grande variação nas quantidades de drogas pelas quais os réus são processados por tráfico em cada unidade da federação. No TJAM, por exemplo, mais da metade dos réus processados por cannabis portavam até 25 gramas, enquanto no TJAL essa proporção não ultrapassa 10%. Em relação aos réus processados em decorrência da apreensão de até 10 gramas de cocaína, a proporção variou de 8% no TJAL a 62% no TJGO.
Tamanha variação indica como a ausência de quaisquer parâmetros balizadores da classificação das condutas pode gerar resultados discrepantes na aplicação da lei, a depender da localidade geográfica.
Gráfico 1
- Percentual de réus com processos relacionados à apreensão de até 25 gramas de cannabis, por unidade da federação
Fonte: IPEA (2023) Critérios Objetivos no Processamento Criminal por Tráfico de Drogas: natureza e quantidade de drogas apreendidas nos processos dos tribunais estaduais de justiça comum (relatório de pesquisa).
Gráfico 2
- Percentual de réus com processos relacionados à apreensão de até 10 gramas de cocaína, por unidade da federação
Fonte: IPEA (2023) Critérios Objetivos no Processamento Criminal por Tráfico de Drogas: natureza e quantidade de drogas apreendidas nos processos dos tribunais estaduais de justiça comum (relatório de pesquisa).
Caso sejam adotados critérios objetivos de quantidade para diferenciação das condutas de uso e de tráfico no Brasil, é imprescindível que os diferentes atores envolvidos no sistema de justiça criminal adotem como regra a presunção de inocência. Ou seja, a posse de drogas até determinadas quantidades deve ser presumida para uso pessoal, não cabendo a imputação inicial de outra conduta. Isso não implica que o porte de uma quantidade maior é prova automática da finalidade de tráfico, mas que, analisado o caso concreto em conjunto com as demais circunstâncias previstas na lei, a acusação deve apresentar evidências para a tipificação como tráfico.
Com o julgamento do RE nº 635.659 pelo STF e com a possibilidade de declaração de inconstitucionalidade do artigo 28, que deixaria de criminalizar o uso de drogas, essa distinção se mostra ainda mais relevante, pois, na prática, pode significar responder ou não a um processo criminal. Nesse sentido, para que a adoção de critérios objetivos de quantidades para diferenciar as condutas de tráfico e uso seja efetiva, é essencial que venha acompanhada de medidas para garantir a aplicação do princípio constitucional da presunção de inocência.
Acesse o policy brief do Ipea, com infográficos https://www.ipea.gov.br/portal/publicacao-item?id=b8f330a5-d67e-4649-bf92-9678ce7954c4
Acesse o relatório da pesquisa na íntegra https://www.ipea.gov.br/portal/publicacao-item?id=0e7e31b0-5ee9-4dd8-a44e-aa1666db355f
[1] Trata-se de estudo quantitativo a partir de uma amostra de 5.121 réus, representativa do universo de 41.100 réus, cujos processos de tráfico de drogas foram sentenciados no primeiro semestre de 2019, no Brasil. O relatório pode ser consultado no seguinte link: https://www.ipea.gov.br/portal/publicacao-item?id=0e7e31b0-5ee9-4dd8-a44e-aa1666db355f
[2] Relatos de campo de diversos pesquisadores de campo.