O planejamento estratégico nas Polícias Civis da lei 14.735/2023: nova forma de gestão ou mais uma formalidade?
A norma não é suficiente para estabelecer uma gestão estratégica nessas corporações, porque isso depende de mudanças estruturais e culturais que a maioria de seus dirigentes e integrantes não está preparada para enfrentar
Alexandre Pereira da Rocha
Doutor em Ciências Sociais. Policial Civil do Distrito Federal. Associado ao Fórum Brasileiro de Segurança Pública
A lei 14.735, de novembro de 2023, que instituiu a Lei Orgânica Nacional das Polícias, trouxe um tópico taxativo no seu artigo 8º, parágrafo único: “os Delegados-Gerais das Polícias Civis devem apresentar, até 30 (trinta) dias após sua nomeação, planejamento estratégico de gestão”. Em geral, a ideia de planejamento estratégico visa flexibilizar, modernizar, estabelecer critérios de mensuração da gestão da organização. Nesse caso, as polícias civis, conhecidas pela excessiva burocratização em suas estruturas e processos, estarão abertas para implementação do novo modelo de gestão?
Nas páginas públicas de polícias civis do Brasil é possível constatar que boa parte delas já ostenta algum documento com a nomenclatura planejamento estratégico, como pode ser consultado nas unidades do Distrito Federal, Bahia, Piauí, Minas Gerais, São Paulo, Rio de Janeiro. Basicamente os documentos seguem o receituário dos manuais de gestão pública, com a definição de missão, visão e valores das organizações; desenhos de organogramas; matrizes de risco; mapas estratégicos; análises de ambientes internos e externos das organizações; estabelecimento de objetivos, indicadores e metas. Assim, mesmo antes da lei 14.735/2023, a maioria das polícias civis já possuía planejamentos divulgados, mas não há informações sobre a maturidade desses documentos nas organizações.
Vale observar que a lei 14.735/2023 estabelece que os planejamentos estratégicos deverão conter: “metas qualitativas e quantitativas de produtividade e de redução de índices de criminalidade; medidas de otimização e de busca de eficiência, incluído o planejamento das ações específicas direcionadas ao melhor exercício das competências do órgão; diagnóstico da necessidade de recursos humanos e de materiais; programas de capacitação do efetivo; e proposta de estrutura organizacional, inclusive com previsão de criação ou de extinção de unidades policiais, caso necessário, a ser implementada por lei específica”.
As determinações sobre metas de produtividade e redução da criminalidade, além das medidas ao exercício de suas competências tratam de temas relacionados às atividades finalísticas das corporações. No geral, elas consideram como sua missão, ou atividade-fim, a elucidação de infrações penais por meio da investigação policial. Desse modo, com planejamento estratégico, elas deverão apontar o que alcançaram de resultados na redução da criminalidade, além de metas previstas para acompanhamento dos resultados. Particularmente nesse tópico há enorme gargalo nas polícias civis, visto que não há critérios padronizados e publicizados sobre a elucidação de crimes.
Como bem aponta Arthur Trindade em artigo do Fonte Segura, não é possível determinar a taxa de elucidação de homicídios, uma vez que não existe um sistema nacional de indicadores que permita mensurar o desempenho da investigação criminal[1]. Essa situação de ignorância se aplica a outros crimes, por exemplo: roubos, furtos, estupros, estelionatos, fraudes. Do mesmo modo, quando se discutem os tópicos de recursos humanos e materiais, que agora são critérios a ser mensurados pela lei 14.735/2023, pouco se consegue justificá-los por um impacto de produtividade nas corporações. Afinal, não há evidências de que mais policiais, viaturas, armamentos geram mais eficácia nas investigações.
A verdade é que as polícias civis ainda se fundamentam num modelo organizacional burocratizado, empirista e insulado, com gestões rigidamente hierarquizadas, com escassos canais de transparência e processos de prestação de contas para a sociedade. Ademais, parece que o pressuposto de sigilo das investigações acaba sendo estendido para a quase totalidade das atividades e processos das corporações, logo há pouca nitidez sobre dados e informações produzidos. Nesse cenário, um planejamento estratégico dificilmente consegue avançar.
Em que pese a relevância do planejamento estratégico estabelecido pela Lei Orgânica das Polícias Civis, não é necessariamente a obrigatoriedade dele que modernizará essas corporações, sobretudo, dando para elas a capacidade de ofertarem resultados efetivos na redução da criminalidade. A norma pode até impor um planejamento estratégico nas polícias civis, contudo ela não é suficiente para estabelecer uma gestão estratégica nessas corporações, uma vez que isso depende de mudanças estruturais e culturais que a maioria de seus dirigentes e integrantes não está preparada para enfrentar.