Fronteiras Amazônicas 02/10/2024

O PCC e as Guianas

Uma das primeiras regiões a ser alvo do processo de rapina europeia nas Américas, o território das Guianas é explorado por garimpeiros que operam ilegalmente e por narcotraficantes

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Rodrigo Chagas

Sociólogo e professor de Ciências Sociais na Universidade Federal de Roraima. Membro do Programa de Pós-graduação Sociedade e Fronteiras. Atua como pesquisador junto ao Fórum Brasileiro de Segurança Pública

Guiana é o nome que, supostamente, os povos do tronco linguístico Aruak usavam para se referir ao território entre o delta do rio Orinoco, na Venezuela, e as margens esquerdas dos rios Negro e Amazonas. Significaria “terra de muitas águas”. Cercada pelos maiores rios da Amazônia e pelo Oceano Atlântico, esse território pode ser compreendido como uma ilha de proporções gigantescas. Seu primeiro nome europeu foi “Costa Selvagem”.

Trata-se de uma das primeiras regiões exploradas pelo processo de rapina europeia nas Américas. Segundo o Tratado de Tordesilhas (1494), a Guiana caberia inicialmente à Coroa Espanhola. Em 1648, com a assinatura do Tratado de Münster, tornou-se território controlado pela República Neerlandesa, hoje Holanda, que introduziu plantações de tabaco e cana-de-açúcar com mão de obra de povos africanos escravizados. No entanto, a região foi disputada por ingleses, franceses e portugueses, que combateram e, eventualmente, pactuaram militarmente com diversos povos indígenas de troncos linguísticos Karib e Aruak que ocupavam ancestralmente o território, arrastando-os para suas disputas.

Esse preâmbulo histórico é importante para compreendermos a complexidade cultural presente na Amazônia Caribenha, como o historiador Reginaldo Gomes de Oliveira nos apresenta a região. Com o fim das Guerras Napoleônicas, já no século XIX, a Guiana Espanhola foi incorporada à República da Venezuela e a Guiana Portuguesa ao Brasil Império, sendo dividida em duas: o litoral (Amapá) e o interior (Roraima). Assim, com a assinatura do Tratado de Paz no Congresso de Viena (1815), a região passou a contar com a demarcação das fronteiras nacionais próximas ao que temos hoje. Além das dezenas de povos indígenas, devido aos processos de colonização, escravidão e servidão, há uma presença importante de negros e indianos, e uma variedade muito grande de idiomas indígenas, europeus e outros, como variações do crioulo. Há ainda a prática de diversas crenças por hindus, muçulmanos, rastafaris e bahá’ís, para além das variações do cristianismo.

Outro aspecto relevante é o geológico. O Escudo das Guianas, uma formação rica em minerais metálicos, expande nossa compreensão geopolítica da região, incluindo até mesmo uma pequena parte da Colômbia. Não por acaso, as Guianas têm sido historicamente um polo de atração para frentes de garimpagem tanto legais quanto ilegais, com o ouro sendo um dos principais minérios extraídos na região.

As Guianas, com destaque para o Escudo das Guinas (Guiana Shield) pontilhado em vermelho:
Fonte: https://pt.wikipedia.org/wiki/Hist%C3%B3ria_das_Guianas#/media/Ficheiro:Guyanas.svg

Com o agravamento da crise venezuelana, por volta de 2015 e 2016, há indícios de que muitos garimpeiros brasileiros que estavam na Venezuela migraram para a Terra Indígena Yanomami (TIY). Informações apontam que áreas do Arco Mineiro na Venezuela, como Las Claritas, estão atualmente sob o controle das Forças Armadas venezuelanas. A partir de fevereiro de 2023, com as operações do Governo Federal brasileiro, parte dos garimpeiros ilegais que estavam na TIY deslocou-se para atuar ilegalmente no Suriname e na Guiana Francesa. Mais recentemente, empresários brasileiros, acusados de garimpagem ilegal na TIY, passaram a operar legalmente na República da Guiana.

Outra atividade que se articula logisticamente pela Amazônia Caribenha é o narcotráfico. Há pelo menos dois casos que foram investigados pela Polícia Federal e descritos no livro “Cocaína: a rota caipira”, de Allan de Abreu − uma fonte relevante de indícios de como o narcotráfico internacional ocorria na região antes da chegada das “facções do sudeste”. Destaco aqui o caso do traficante Mário Sérgio que, articulado aos cartéis colombianos, promovia o tráfico de toneladas de cocaína produzida na Colômbia, transportada por barcos pelo Rio Negro e por aviões pela Venezuela. A carga era embarcada no Suriname para Europa e África. O outro caso é de Leonardo Dias Mendonça, que começou como garimpeiro na TI Yanomami e se tornou grande traficante na Guiana e Suriname.

Segundo o estudo “Cartografias da violência na Amazônia”, produzido pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública em 2023, as disputas entre os grupos criminais originários no Sudeste, Comando Vermelho (CV) e Primeiro Comando da Capital (PCC), coincidiram com o aumento da violência na região e investigações em andamento apontam que desde 2013 as frentes de garimpagem já eram cobiçadas pelas facções. Seguindo as notícias e relatos variados, é provável que representantes do CV, em parceria com grupos locais, incluindo colombianos e peruanos, atuem nos rios Negro e Amazonas. Também há indícios de que pessoas vinculadas ao CV trafiquem “maconha colombiana” (skunk) no atacado utilizando a estrutura logística das frentes de garimpagem na TIY.

No entanto, a “facção” que predomina nas periferias, nas vicinais e em comunidades indígenas em Roraima é o Primeiro Comando da Capital, que se firmou eliminando o grupo local, A Maioria, e em confronto com a coligação Comando Vermelho-Família do Norte, em massacre que foi descrito por Bruno Paes Manso e Camila Nunes Dias em “A Guerra”.

Segundo dados publicados no “Atlas da Violência” de 2024, Macapá tornou-se a segunda capital mais violenta do Brasil em 2022, perdendo apenas para Salvador e deixando Manaus em terceiro lugar. Um fenômeno muito relevante é a letalidade policial do estado, conforme aponta o artigo Matar e Morrer no Amapá, que tem por primeiro autor o antropólogo Marcus Cardoso da UNIFAP, que escreve em sua introdução:

“Proporcionalmente, a Polícia Militar do Estado do Amapá (PM-AP) é a que mais mata no Brasil (FBSP, 2022). A maioria dessas mortes são registradas como ‘resposta a injusta agressão’, resultado da resistência violenta de suspeitos durante abordagem policial. No estado, essas mortes são exaltadas tanto por membros da corporação quanto por apoiadores da letalidade policial que se reúnem em páginas do Facebook e do Instagram do perfil batizado de Devotos do Bope-AP”.

As apurações que estamos realizando em relação às facções no Amapá apontam para uma possível correlação entre as disputas de grupos criminais, alta letalidade policial e estes índices alarmantes de violência na região. O grupo criminoso Amigos Para Sempre (APS), em coligação com o CV, estaria em guerra com a Família Terror do Amapá (FTA), em parceria com a irmandade PCC. A mesma FTA, segundo a reportagem Facção toma garimpo na Guiana Francesa, estaria obrigando garimpeiros brasileiros a trabalharem em regimes brutais. Não se sabe ainda muito sobre o que fazem na Venezuela e República da Guiana, mas estão por lá. Desconheço informações consistentes sobre a presença de facções atualmente no Suriname. De toda forma, tudo indica que o PCC tem construído uma presença consistente nas Guianas.

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