O PAPEL DAS INSTITUIÇÕES DE SEGURANÇA PÚBLICA NA REPRESSÃO QUALIFICADA AO NARCOTRÁFICO: UMA REINVENÇÃO NECESSÁRIA COM O FIM DA GUERRA ÀS DROGAS?
Num país com massivos números de pequenos traficantes presos e com as significativas dificuldades de consensos no que tange à Política sobre Drogas, o foco das instituições de segurança pública em desafios que outros países já enfrentam poderia ser parte de um processo de reinvenção que a cada dia se mostra mais necessário
Gustavo Camilo Baptista
Psicólogo e Mestre em Educação pela Universidade de São Paulo e Doutor em Psicologia Clínica pela Universidade de Brasília. Membro da carreira de Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental do Ministério da Gestão e Inovação em Serviços Públicos. Ex-investigador da Polícia Civil do Estado de São Paulo
Políticas sobre drogas são historicamente divididas em dois eixos inspirados na Economia: o de “redução de demanda”, que se vincula às questões dos usuários de drogas, e o de “redução de oferta”, que inclui a repressão ao tráfico de drogas e a regulação do comércio de drogas lícitas (álcool, tabaco, substâncias precursoras e substâncias controladas, tais como medicamentos). Essa classificação, apesar de, conforme trabalho anterior, ser limitada, visto que a dinâmica de mercados ilícitos é distinta das dos lícitos, é usada em acordos internacionais, tal como a Estratégia Hemisférica sobre Drogas da Organização dos Estados Americanos, da qual o Brasil é signatário.
Mudanças importantes são vistas sobre esse tema em diversos países nas últimas décadas, que se refletiram na Sessão Especial da Assembleia Geral das Nações Unidas sobre Drogas (Ungass), ocorrida em 2016, que, para muitos autores, difundiu o imperativo do fim da Guerra às Drogas.
Entre esses autores, há os que defendam que o peso dado pelos gestores das políticas de drogas nas ações de saúde originou, nos últimos anos, até por concessões políticas, um retorno de ações de repressão ao narcotráfico mais tradicionais, em que pese a ineficiência de altas taxas de encarceramento e os impactos decorrentes destas em grupos socialmente vulneráveis.
Haveria, por conseguinte, a necessidade de se “reinventar” as ações de redução de oferta, o que incluiria a sua própria denominação. Elas não são dispensáveis mesmo após o anunciado fim das Drug Wars, pois não é possível regular os mercados de drogas lícitas por meio unicamente de agências reguladoras. Dois fatores demonstram essas dificuldades. A princípio, mesmo mercados lícitos, tais como o de tabaco no Brasil e o de Fentanil nos Estados Unidos, são permeados por problemas de regulação que demandam emprego dos órgãos de segurança pública. No primeiro caso, conforme constatado na Análise Executiva da Questão de Drogas no Brasil, algumas indústrias, por questões fiscais, empregaram o “exportabando” (exportação de cigarros para que estes sejam posteriormente contrabandeados para o Brasil) e instalações de indústrias em outros países para o mesmo fim, o que não é foco de atuação da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), e sim das polícias e da Receita Federal. No caso do Fentanil, trata-se de uma substância analgésica e anestésica que, nos Estados Unidos, segundo relatório do DEA, ora é desviada nos hospitais, ora é traficada de outros países (notavelmente a China, a Índia e o Canadá), ora é misturada com outras drogas (tal como a heroína) e ora é produzida internamente naquele país a partir de substâncias precursoras provenientes do México. Desde 2013, de acordo com o 4º Informe do Subsistema de Alerta Rápido sobre Drogas (SAR), esse país lida com um aumento súbito no número de mortes por overdose, sendo que em 2021 houve mais de 106 mil mortes.
Soma-se a estes fatores o impacto do desenvolvimento das técnicas da Química no mercado de drogas ilícitas. São exemplos históricos a descoberta de técnicas de refino de cocaína (ocorrida no Séc. XIX, e que levou a uma forte difusão na Europa) e a descoberta do LSD em 1943. Atualmente, todavia, os traficantes conseguem mudar uma parte da fórmula molecular de uma droga, produzindo outra que é de difícil identificação ou que sequer é conhecida. Em diversos países, as drogas de origem vegetal (maconha, cocaína e heroína), trazidas de locais distantes de produção, são substituídas por centenas de substâncias com maior efeito psicoativo produzidas com substâncias precursoras disponíveis localmente em mercados lícitos, mas desviadas de seus fins originais.
Algumas iniciativas para essa “reinvenção” estão sendo feitas em alguns países, inclusive no Brasil, tal como a maior ênfase na atuação na descapitalização das organizações criminosas vinculadas ao narcotráfico. Algumas polícias alteraram as suas metas, abandonando a busca por números de prisões (o que representa o mínimo de bom senso) e aumentando a ênfase ora na quantidade de drogas apreendidas (o que é relativo, visto que se trata de um prejuízo recuperável), ora na apreensão de bens patrimoniais e recursos financeiros dos traficantes.
Outras possibilidades se relacionam com a percepção de que o foco das ações das polícias, bem como de ações de prevenção à violência de forma mais ampla, deveria ser não onde existe mais oferta de drogas, mas onde os conflitos inerentes aos mercados ilícitos estão gerando mais danos, tais como na elevação de taxas de homicídio ou no domínio de territórios pelo crime organizado. O problema, neste contexto, é como realizar ações voltadas para desestruturar as estruturas organizacionais do narcotráfico com a prevenção das externalidades negativas que estas podem resultar.
Em um país com os massivos números de pequenos traficantes presos e com as significativas dificuldades de consensos no que tange à Política sobre Drogas, o foco das instituições de segurança pública em desafios que outros países já enfrentam poderia ser parte de um processo de reinvenção que a cada dia se mostra mais necessário.