O mistério dos homicídios ocultos no Brasil e o envolvimento da perícia na trama
Há necessidade de aperfeiçoamentos entre todos os operadores de registros de ocorrências, ou seja: as agências policiais e as secretarias de saúde precisam compartilhar as informações de modo mais efetivo
Cássio Thyone Almeida de Rosa
Graduado em Geologia pela UnB, com especialização em Geologia Econômica. Perito Criminal Aposentado (PCDF). Professor da Academia de Polícia Civil do Distrito Federal, da Academia Nacional de Polícia da Polícia Federal e do Centro de Formação de Praças da Polícia Militar do Distrito Federal. Membro do Conselho de Administração do Fórum Brasileiro de Segurança Pública
O Atlas da Violência 2024, fruto de uma parceria entre o IPEA (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) e o FBSP (Fórum Brasileiro de Segurança Pública), coordenado por Daniel Cerqueira (IPEA) e Samira Bueno (FBSP), revelou, quando lançado, no dia 18 de junho, dados que repercutiram muito na mídia, em especial pela abordagem dos chamados “Homicídios Ocultos”.
Segundo esse levantamento:
“Entre 2012 e 2022, 131.562 pessoas morreram de morte violenta sem que o Estado conseguisse identificar a causa básica do óbito, se decorrente de acidentes, suicídios ou homicídios, as chamadas Mortes Violentas por Causa Indeterminada (MVCI). Esse fenômeno de indeterminação na causa do óbito aumentou consideravelmente em 2018 e 2019 (…) Tendo em vista que parcela dessas MVCI são, na realidade, homicídios que ficaram ocultos nas estatísticas, as análises sobre prevalência da violência letal ficam prejudicadas, ainda mais que tal situação não ocorre de maneira aleatória, mas concentrada em um conjunto restrito de UFs”.
“No período compreendido entre 2012 e 2022, o número de homicídios ocultos foi igual a 51.726. Portanto, consideramos que, nesse período, ao invés de ter ocorrido 609.697, houve, na realidade, 661.423 homicídios no país.”
É importante lembrar que a fonte de informações na qual está baseado o Atlas da Violência, no que se refere à questão dos homicídios, é gerada pelo Ministério da Saúde, através do SIM (Sistema de Informações sobre Mortalidade).
A pergunta-chave que se pode fazer em relação ao tema é: por que uma morte de causa externa entra em uma classificação como sendo de “causa ignorada”? A morte classificada como associada a causas ditas externas inclui os homicídios, acidentes e suicídios, todas modalidades de mortes violentas, e, portanto, não naturais. Será que é tão difícil assim definir essa etiologia para mortes violentas? Seria um problema relacionado ao fluxo de informações entre agências do Estado? Por que a concentração do problema em entes federativos específicos?
Buscando esclarecer um pouco essas questões acessamos um documento oficial importante, intitulado Declaração de Óbito: manual de instruções para preenchimento, publicado pelo Ministério da Saúde (MS), por meio da Coordenação-Geral de Informações e Análises Epidemiológicas, atualizado no ano de 2022.
Nesse documento constam as definições empregadas e que julgamos relevantes:
Óbito por causa externa: é o que decorre de uma lesão provocada por acidente ou violência (agressão, suicídio, acidente ou morte suspeita), qualquer que seja o tempo decorrido entre o evento e o óbito.
Causas de morte: as causas de morte, a serem registradas no atestado médico de óbito, são todas as doenças, estados mórbidos ou lesões que produziram a morte, ou que contribuíram para ela, e as circunstâncias do acidente ou da violência que produziu essas lesões.
Causa básica de morte: a causa básica de morte é definida como: (a) a doença ou a lesão que iniciou a cadeia de acontecimentos patológicos que conduziram diretamente à morte; ou (b) as circunstâncias do acidente ou da violência que produziu a lesão fatal.
A declaração de óbito é apresentada em um formulário, cujos blocos apresentam seus respectivos campos de preenchimento. O Bloco VII é exatamente o de Causas Externas. As instruções para preenchimento desse bloco são reproduzidas a seguir:
“PROVÁVEIS CIRCUNSTÂNCIAS DE MORTE NÃO NATURAL
48 Tipo – assinalar com um “X” a opção correspondente ao tipo de morte violenta ou circunstâncias em que se deu a morte não natural (1 – Acidente, 2 – Suicídio, 3 – Homicídio, 4 – Outros). Essa informação frequentemente é dada pelo médico legista, ou obtida nos laudos do IML. Quando não for sabido o tipo, informar 9 –Ignorado.” Grifo do autor
O trecho destacado pode explicar em parte os problemas. Na perícia oficial de natureza criminal há uma divisão de trabalho e uma competência que são específicas de cada um dos peritos. Os peritos criminais, em casos em que o cadáver está presente na cena de crime, apresenta um DIAGNÓSTICO DIFERENCIAL PARA A MORTE VIOLENTA, exatamente a distinção entre homicídio, suicídio e acidente. Já o perito médico legista apresenta em seu Laudo Cadavérico a CAUSA MÉDICA DA MORTE. São coisas bem distintas. Vamos exemplificar: um homicídio produzido com arma de fogo, no qual a vítima tenha sido atingida por um único projétil. O perito criminal poderá concluir por homicídio, mas o médico legista, ao responder um dos quesitos predefinidos de seu laudo, a saber, a causa da da morte, poderá escrever: morte por choque hipovolêmico, associado a lesão torácica causada por projétil de arma de fogo. Um médico não deveria se manifestar sobre um diagnóstico diferencial, já que está examinando apenas o cadáver, sem qualquer contextualização e não pode também confiar em informações que acompanham uma solicitação de perícia. Deve se restringir aos vestígios e à causa médica da morte. Mesmo em situações óbvias, por exemplo, quando recebe um cadáver com múltiplas lesões de arma de fogo, podendo em tese excluir acidente e suicídio, a uniformidade do processo deveria prever uma segunda instância para a definição final do diagnóstico diferencial da morte. Assim a redução da chamada causa indeterminada seria efetiva, além da correção de possíveis outros erros.
Há ainda os casos em que não há perícia de local de crime com o corpo presente, então o estabelecimento dessa causa da morte estaria restrito à escolha do legista ao preencher um atestado de óbito e às informações de um inquérito policial (e eventualmente de um processo na justiça).
Portanto o próprio manual oficial sobre o atestado de óbito incorre em erro. Alguns estados possuem, certamente, mecanismos de verificação quando a opção é pelo campo 9 do formulário, ou seja, causa IGNORADA. Se essa informação não for buscada em um protocolo que realimente o sistema, mas com uma informação de qualidade, essa lacuna seguirá existindo.
Mesmo com essa previsão, vários casos em que nem mesmo a investigação ou a perícia forem capazes de estabelecer o diagnóstico diferencial, ainda ocuparão essa classificação. Um exemplo: semana passada, num júri, ainda estávamos a discutir se um caso se referia a um homicídio ou a um suicídio. A ré foi inocentada, mas a morte, ocorrida há oito anos, provavelmente foi inserida nessa base como causa ignorada. Será que algum dia vai mudar sua classificação?
É preciso, portanto, que os mecanismos de controle dessas informações sejam revistos e também uniformizados para todos os estados. A comunicação entre todos os operadores requer aperfeiçoamentos, ou seja, as agências policiais e as secretarias de saúde precisam compartilhar as informações de modo mais efetivo. Só assim a maioria dos Homicídios Ocultos aparecerá em nossas estatísticas.