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O medo e a qualidade da vida urbana

Priorizar o enfrentamento dos grupos criminosos é um equívoco. Além de pouco efetiva, essa política só aumenta o sentimento de insegurança em meio à sociedade

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Arthur Trindade M. Costa

Professor de sociologia da Universidade de Brasília e membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública

Os homicídios, feminicídios, latrocínios e lesões corporais seguidas de morte são os crimes mais graves tipificados no Código Penal. No Brasil, o quadro é especialmente grave. Em 2016, segundo o Escritório das Nações Unidas para Drogas e Criminalidade (UNODC), dentre as 50 cidades com maiores taxas de homicídios no mundo, 19 eram brasileiras. Por isso, esses crimes têm recebido enorme atenção dos pesquisadores e gestores de segurança pública.

Entretanto, há outros crimes considerados menos importantes que afetam significativamente a vidas das pessoas. Eu me refiro aos roubos a transeuntes, furtos, ameaças e agressões. Os estudos mostram que eles impactam a sensação de segurança. Residir ou ter que circular em lugares com alta incidência de tais crimes é umas das principais causas de insegurança da população.

Algumas pesquisas têm mostrado que o medo do crime é alto, mesmo em lugares onde as taxas de homicídios são baixas.  O medo do crime não é simplesmente o resultado da criminalidade ou das imagens e notícias produzidas pela mídia. Ele diz respeito a sentimentos difusos de ansiedades e incertezas que são resultado das transformações sociais das sociedades pós-modernas. O medo se tornou um dos principais problemas dos nossos tempos e suas consequências podem ser percebidas em diferentes níveis.

O medo do crime tem consequências bastante concretas. No plano social, ele restringe alguns comportamentos, fragiliza os laços vicinais e esvazia os espaços públicos. Em função do medo de ser vítima de crimes, as pessoas evitam frequentar locais desertos, sair à noite, chegar tarde em casa, frequentar locais com grande concentração de pessoas, conversar e atender pessoas estranhas. As pessoas também deixam de sair de casa portando muito dinheiro, objetos e pertences que chamem a atenção.

Ele tem efeitos psicológicos negativos, causando algumas doenças mentais relacionadas a ansiedades, descrenças nos outros e insatisfações com a vida urbana. O medo do crime também tem consequências econômicas. Leva ao aumento de gastos com segurança, gera processos de gentrificação e especulação imobiliária, além de afetar os setores de turismo e entretenimento. No plano político, o medo abre espaço para discursos punitivistas, sexistas, racistas e xenófobos. Ele é o principal combustível da política do ódio.

Os estudos mostram que o medo do crime não afeta a todos na mesma intensidade. Em geral, mulheres, negros e pobres sofrem muito mais os seus efeitos. Embora seja percebido em todos lugares, o medo está muito mais presente nos bairros de baixa renda.

Ao contrário do que supõe o senso comum, as pessoas que já foram vítimas de crime não são necessariamente as que mais sentem medo. A relação entre medo e vitimização depende do tipo de crime e do número de vezes que a pessoa foi vitimada. Além disso, devemos também considerar a vitimização indireta. Quando a vítima é um membro da família (ou alguém com fortes laços afetivos), a associação entre vitimização e medo do crime tende a ser muito mais forte. Isso é especialmente válido quando as vítimas dos roubos e furtos são nossos filhos e filhas.

Alguns fatores contribuem para diminuir o medo do crime. Confiar na polícia, confiar nos vizinhos, residir em áreas bem urbanizadas e iluminadas, bem como poder contar com transporte público de qualidade são fatores que podem reduzir a sensação de insegurança.

Por ser tão importante na vida moderna, alguns países passaram a lidar com o medo, tentando transformá-lo em risco. Assim, implantaram políticas destinadas a melhorar as condições do espaço urbano, especialmente das áreas com grande concentração de pessoas como estações de metrô, rodoviárias, centros comerciais e parques. Além de investimentos em equipamentos urbanos, estas cidades implantaram estratégias de policiamento voltadas para diminuir roubos e furtos, tais como policiamento por manchas criminais, policiamento orientado por problemas e videomonitoramento. Também foram realizadas parcerias com associações de empresários e comerciantes.

Definitivamente, esse não é o caso do Brasil. A prioridade em alguns estados, como o Rio de Janeiro, é o enfrentamento dos grupos criminosos. O que é um equívoco, pois, além de ser pouco efetiva, esse tipo de política só faz aumentar o sentimento de insegurança para a sociedade. A guerra ao crime não reduz a violência e aumenta o medo.

Noutros estados, predomina uma visão de que esse tipo de problema deve ser enfrentado através do aumento de prisões em flagrante por porte de drogas. Essa estratégia também se mostrou pouco efetiva. Além de aumentar a população prisional, ela também aumenta a tensão entra polícia e juventude, em especial a juventude negra. A guerra às drogas não reduz a criminalidade, aumenta a desconfiança nas polícias e tende a aumentar o sentimento de insegurança.

Em quase todos os estados, relegou-se o atendimento dos roubos, furtos, ameaças, e agressões a uma posição secundária nas políticas de segurança. Praticamente não existem políticas de segurança visando à melhoria da qualidade de vida que impliquem na melhoria dos serviços públicos, no aumento da confiança nas polícias e na adoção de estratégias específicas de policiamento. Desse modo, seguimos todos cada vez mais reféns do medo.

 

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