Mulheres e Segurança Pública 15/05/2024

O lugar da mãe no bastidor da Segurança Pública

Na condição de mãe-polícia e mãe-de-polícia, ouso fugir do costumeiro modo de discutir temáticas afetas à segurança pública como política e direito social para discorrer sobre a condição das mães nas/das forças de segurança pública

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Juliana Lemes da Cruz

Doutora em Política Social pela UFF, Conselheira do Fórum Brasileiro de Segurança Pública e Cabo da Polícia Militar de Minas Gerais

Joaquim, aos 2 anos, foi presenteado com aviõezinhos e carrinhos de brinquedo. Foram os primeiros estímulos em forma de mensagem oculta para que o garoto acreditasse que poderia voar e assumir o espaço público na fase adulta. Rita, com a mesma idade, recebeu bonecas-bebê e panelinhas. A mensagem embutida nesse movimento faria a garota acreditar que deveria ser uma cuidadora zelosa das pessoas do seu espaço privado, com destaque à maternidade e à família. Quase que imperceptível, visto que é tão naturalizado, os papéis de gênero socialmente construídos moldam meninos e meninas de formas diferentes, como se nascessem prontos para desempenhar essa ou aquela postura. Eles, cabeça; elas, coração. Nesse movimento, que rende longas discussões sobre diferenças entre sexo e gênero, por gerações, se formatou a figura da mãe.

Referencio essa dinâmica porque, antes mesmo de nós, mulheres, nos tornarmos mães, já éramos ensinadas como nos comportar e sentir quando e se a maternidade chegasse. Sem melindre, afirmo o quão romantizada essa condição ainda é. Uma experiência que por muito tempo foi destino, hoje é escolha. Envolve mudança, amor, entrega, alegria e orgulho, mas também medo, aflição, incerteza, dor e culpa.

Do lugar de mãe, no sentido composto, na condição de mãe-polícia e mãe-de-polícia, ouso fugir do costumeiro modo de discutir temáticas afetas à segurança pública como política e direito social para discorrer sobre a condição das mães nas/das forças de segurança pública.

Utilizando a categoria “polícia” como indicativo genérico para me referir às profissionais desse campo, busco provocar reflexões sobre três lugares de onde as mães se apresentam: 1) mãe-de-polícia; 2) mãe-polícia; e 3) mãe-polícia de filho/a-polícia. De forma simbólica, por analogia à característica das flores, chamarei o primeiro grupo de mães-lírio, por se adaptarem ao solo onde passaram a pisar os seus filhos; o segundo grupo, de mães-bromélia, pela resistência nos distintos ambientes que se expõem; e o terceiro grupo, de mães-áster, por serem representativas da combinação de amor, paciência, poder, sabedoria e fidelidade.

Mães-lírio – Representativas dasquelas que se orgulham sem medida, que conhecem o básico do ofício dos/as filhos/as, pois, de propósito, são poupadas, por suas crias, das preocupações sobre a realidade de incertezas da atuação profissional cotidiana. Essas são as mães que conseguem enxergar o glamour do lugar de autoridade dos/as filhos/as, solidarizando-se com as aflições de outros policiais como se mães de todos fossem. Quando se é a mãe comum, certamente perguntas ficam sem respostas e o que lhes resta é esperar passar as fases que seus filhos enfrentam. Sejam quanto aos cursos de formação, novo tipo de atividade, ou operações programadas de combate à criminalidade. A privação do filho é a privação da mãe. A ausência injustificada nos momentos importantes dá lugar à compensação materna de ter formado uma pessoa de coragem, resistente e correta.

Mães-bromélia – Defino-as como aquelas que protegem os/as filhos/as para que não percebam o real perigo. Que ficam ausentes nos momentos simbólicos e que criam memórias nos/as filhos/as em datas incomuns. Mães sem Natal ou Ano Novo. E como explicar às crianças que a mãe não celebrará com elas o Dia das Mães? Resta-lhes interpretar que a mamãe é forte, é heroína, é rocha e nem chora. Aquela mãe de que o filho se orgulha por ser também uma admirável personagem. Noutro rumo, é também a mãe que vê seu filho na criança abusada que demanda acolhimento; na vítima de estupro assustada na sala gelada do hospital onde terá seu corpo tocado; no moleque que tomba na viela escura da periferia. Sim! A mãe policial, por um momento, imagina a dor da mãe que não conseguiu proteger seu filho do mundo do crime. Ela vê o jovem perdido e lembra daquele que deixou em casa, protegido, como se o tivesse debaixo de suas asas. É a mãe que se multiplica para parecer equilibrar todos os pratos. É a que falta às reuniões da escola e se vai, aparece fardada e armada. Ela assusta algumas mães e ganha a admiração de outras.

Mães-áster – Preservam o recente passado de terem sido o tipo de mãe que inventou histórias para justificar suas ausências e que já não tem a sensação de que conseguirá proteger suas crias de tudo e de todos. Elas se veem orgulhosas pelas conquistas dos/as filhos/as, mas estão preocupadas pelo que sabem que a profissão reserva aos que se habilitam a ela: nada de herói, nada de glamour. O ambiente é conhecido e sinistro. Assim, a tarefa mais difícil para essa mãe é permitir que o/a filho/a viva sua história e que trace seu próprio caminho na profissão que ela já conhece. Conciliar os dois mundos das mães-áster significa serem capazes de elaborar em quais momentos cada uma aparece – a policial e a mãe. Isso porque ela foi a mãe que protegeu até o limite. Aquela que omitiu sobre os perigos a respeito dos quais é chamada a orientar nos seus pormenores. No entanto, se vê com o privilégio de se perceber em um lugar no qual compreende melhor os processos e que lhe permite canalizar adequadamente os apoios.

Se consideramos a missão dos pais e/ou cuidadores, a entrega ao mundo de uma pessoa resiliente, capaz, disposta, determinada, corajosa e forte, parece tarefa cumprida quando o/a filho/a é integrado/a uma das forças de segurança do país. Afinal, desafiar limites e administrar frustrações é aprender a lidar com a vida, que não é bem uma mãe zelosa. Ao contrário, a vida é dura e implacável, especialmente sob um contexto social no qual ainda impera a resistência, tanto social, quanto dos próprios profissionais, de que são tão diferentes e autossuficientes que nem precisam de cuidados ou serem percebidos como sujeitos de direito. O que as mães-lírio, bromélia e áster têm mais em comum é a expectativa sincera, ainda que romântica, de que seus/suas filhos/as consigam preservar a saúde mental e física, estejam realizados com o que fazem e que retornem para suas casas vivos/as.

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