O julgamento do caso da boate Kiss: como a perícia produziu provas que foram usadas no Tribunal do Júri
O resultado do julgamento pode até ser questionado, mas o que é indiscutível é que o trabalho dos órgãos da perícia oficial do Rio Grande do Sul foi de extrema importância para as discussões e embates que tiveram lugar no tribunal do júri
Cássio Thyone Almeida de Rosa
Graduado em Geologia pela UnB, com especialização em Geologia Econômica. Perito Criminal Aposentado (PCDF). Professor da Academia de Polícia Civil do Distrito Federal, da Academia Nacional de Polícia da Polícia Federal e do Centro de Formação de Praças da Polícia Militar do Distrito Federal. Ex-Presidente e atual membro do Conselho de Administração do Fórum Brasileiro de Segurança Pública
Dia 10 de dezembro, última sexta-feira, a mídia destacou o fim do julgamento de um dos casos mais chocantes ocorridos em nosso país: o Caso do Incêndio da Boate Kiss. Caso que se enquadra naquilo que denominamos como desastres ou acidentes em massa, que se caracterizam por um número elevado de mortos em um único evento, trazendo como principal característica a superação da capacidade de resposta dos órgãos de segurança pública, em especial os órgãos periciais, que acabam tendo como desafio atender de uma única vez uma demanda muito além do esperado.
O incêndio ocorreu em Santa Maria, região central do Rio Grande do Sul, deixando um saldo de 242 mortos na madrugada de um domingo, dia 27 de janeiro de 2013. Foram também numeradas cerca de 600 pessoas com ferimentos dos mais diversos. O fogo teve início durante a apresentação da banda Gurizada Fandangueira, que teria feito uso de artefatos pirotécnicos no palco, originando a fonte de ignição para o incêndio.
Foram praticamente 9 anos de um processo marcado por muitas controvérsias, inúmeras testemunhas, diversas peças técnicas produzidas pelos órgãos periciais responsáveis ligados ao IGP: Instituto Geral de Perícias do Rio Grande do Sul.
O julgamento durou 10 dias, e terminou com a condenação por homicídio doloso dos quatro réus apontados como responsáveis pela tragédia: os sócios da boate Elissandro Spohr e Mauro Hoffmann, o vocalista da banda que tocava na boate na noite da tragédia, Marcelo de Jesus dos Santos, e o produtor de eventos que trabalhava para a banda, Luciano Bonilha.
Durante o julgamento, muitos foram os aspectos apresentados e discutidos, nos quais o trabalho dos órgãos periciais mostrou-se de fundamental importância para esclarecer detalhes relevantes.
Já no início do processo, em março de 2013, o engenheiro elétrico Osvaldo André Betat Brasílio perito do Instituto-Geral de Perícias (IGP) foi convocado a prestar depoimento à Justiça do Rio Grande do Sul. Segundo informações divulgadas pelo próprio Judiciário, o perito apontou desrespeito às normas de segurança na casa noturna.
O Perito também teria descartado nesse depoimento a possibilidade de que um curto-circuito tenha causado o incêndio, além de apontar problemas na iluminação e na sinalização das saídas de emergência, problemas agravados pela dissipação da fumaça na noite da tragédia. Outra questão mencionada relaciona-se à capacidade máxima da construção, que segundo esse critério deveria possuir duas portas (vias de escape) e não apenas uma. A vedação das janelas e a colocação de guarda-corpos teriam impactado também a possibilidade de fuga dos clientes da casa.
A perícia também esclareceu que o tipo de espuma usada no teto e nas paredes da casa noturna como revestimento acústico liberou gases tóxicos durante a queima, como cianeto e monóxido de carbono, gases apontados pelos exames de necropsia como os causadores da morte de pelo menos 234 das 242 vítimas da tragédia. As análises do IGP mostraram que todas as pessoas que morreram dentro da boate no dia 27 de janeiro foram vítimas de asfixia, e não de queimaduras ou outros ferimentos. Outras sete pessoas morreram posteriormente, internadas em hospitais.
O resultado do julgamento pode até ser questionado, mas o que é indiscutível é que o trabalho dos órgãos da perícia oficial do estado do Rio Grande do Sul foi de extrema importância para as discussões e embates que tiveram lugar no tribunal do júri. Um ponto também digno de elogio foi a pronta resposta no sentido de conseguir identificar o mais rápido possível as vítimas do trágico evento, permitindo que as famílias das vítimas pudessem receber seus entes e viver o luto diante da inevitável dor. Em desastres em massa, como estes, a pressão em responder o mais rápido a essa demanda acaba sendo o aspecto mais cobrado pela sociedade.
Finalmente, tão relevante como os aspectos aqui destacados é o aprendizado que se pode extrair desse tipo de evento, para que o legado de sofrimento possa se reverter em ações efetivamente implementadas para que outros eventos como esse sejam evitados.