O inimigo agora é outro? Práticas tradicionais e simplórias para problemas complexos
Apesar de terem mobilizado grande parte da atenção nacional, os ataques às escolas receberam respostas de diversas agências que perderam força de integração. A demanda por soluções fundamentadas que o problema exige perdeu espaço
Gilvan Gomes da Silva
Formado em Antropologia e em Sociologia, com mestrado e doutorado em Sociologia pela Universidade Nacional de Brasília. Membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública
Entre os vários tipos de violências que demandam políticas de segurança pública, um tipo destacou-se nacionalmente nos últimos anos por assemelhar-se a ataques terroristas. As principais características são a imprevisibilidade do momento da ação e do local, a potencialidade da letalidade dos ataques e a fragilidade e a simbologia da vítima. Os ataques ocorridos nas/às escolas tiveram seu ápice há um mês, tendo como ponto crítico nacional o dia 20 de abril. Apesar de terem mobilizado grande parte da atenção nacional, as respostas das diversas agências perderam força de integração entre os diversos entes e a demanda por soluções fundamentadas que o problema exige perdeu espaço. Por não haver um ente integrador com força política, as agências atuaram entre uma incipiente busca por soluções científicas e o uso de soluções tradicionais.
O espaço escolar apresenta diversas dimensões simbólicas e a visibilidade do impacto das violências às escolas e nas escolas repercutem e mobilizam diversos setores da sociedade. Como destacaram Renata Braz e Fagner Cardoso, desde 1999 foram registrados 24 episódios no Brasil. Acrescento que, segundo dados do Poder360, de 2011 a 2023 foram registrados 12 casos e, destes, 5 casos entre setembro de 2022 e abril de 2023. Em Minas Gerais 14 pessoas foram assassinadas em um único ataque; o ataque mais recente foi em abril de 2023 e 4 crianças foram assassinadas em uma creche.
A complexidade desses ataques ganha nuanças quando refletimos sobre o estudo das fases do crime (cogitação, preparação, execução, consumação e exaurimento) e as tecnologias de prevenção e repressão disponíveis pelas agências de segurança pública. Nesse sentido, tanto agências de segurança pública quanto as políticas de segurança pública estão voltadas para intervir na fase da execução e consumação (foco no crime e no criminoso) e não para diminuir a criminalidade, pois atuam no visível e no quantificável para construção de inquéritos, utilizando as estratégias policiais tradicionais.
Por exemplo, na primeira fase do crime (cogitação) há o momento da construção da ideia, de ponderar os prós e contra e o momento de decisão de praticar o crime. É nessa fase que também pode haver a ideação do suicídio, sendo a ação policial reativa aos crimes cometidos pouco eficiente como proposta dissuasória, como aconteceu em três dos maiores atentados no Brasil, em que os agressores se suicidaram após o ataque.
Essa fase não é ilegal no Brasil e o espaço virtual/digital tornou-se um ambiente propício para fecundar e hospedar essa fase a partir de condicionantes ígneos do espaço presencial vivenciados e ensinados na família, no ambiente escolar, entre outros. Portanto, é a fase motivacional. É a concatenação e a consolidação da causa do crime. Assim, quais as possibilidades de atuação das agências de segurança pública nessa fase? Quais ações são possíveis para prevenir e até mesmo reprimir?
Há uma incipiente tentativa de interferir na primeira fase, na fase de construção da cogitação e na fase da preparação do crime. O mês de abril de 2023 refletiu o início de integração dos entes federativos, da sociedade civil e da fundamentação científica para construção de planos de ação. Tendo como ator coordenador o Ministério da Justiça e Segurança Pública, as polícias judiciárias (Polícia Federal e Civil) monitoraram as redes sociais para identificar e deter/prender grupos que fomentavam os ataques, as Polícias Militares e Guardas Municipais intensificaram policiamento nas proximidades das escolas. As Secretarias Estaduais de Educação incentivaram debates nas escolas sobre cultura da paz, assim como informação sobre orientações de segurança. O dia 20 de abril culminou em ações conjuntas de agências municipais, estaduais e federais; especialistas de diversas áreas de conhecimento apresentaram possíveis causas; empresas de comunicações deixaram de informar nomes, motivação e modos de atuação criminosa, entre outras ações.
Houve um início de formulação de solução que tinha como fundamento algo que se assemelhava às soluções científicas para o problema complexo, mas as soluções estavam desvinculadas uma das outras, como uma colcha de retalho teórica, necessitando um fio condutor central. Com o passar do tempo volta-se às soluções tradicionais, isto é, buscar suspeitos e aumentar a vigilância e a repressão para determinados grupos. O inimigo agora é outro e a forma de prevenção e controle é a mesma. Em Santa Catarina, por exemplo, a lógica de “combate” a outros crimes se repete, com aumento de policiais nas escolas e treinamento da comunidade escolar para “se defender quando houver ataque de um agente invasor”. Já em Mato Grosso as ações estão voltadas prioritariamente ao “sistema de vigilância por câmeras de monitoramento, aumento de rondas ostensivas e botão do pânico”. As ações apresentadas pelo Governo de Goiás são semelhantes, com a novidade de detectores de metais nas escolas e monitoramento das redes sociais. No Distrito Federal houve solicitação da Secretaria de Estado de Educação para que os responsáveis pelos alunos auxiliem observando o comportamento dos jovens e monitorando as mochilas.
Assim, há ações tradicionais e respostas inovadoras, mas essas respostas não se integraram como ente constituinte de uma ciência, mas retalhos de conhecimento de diferentes áreas científicas. Com a construção socio-histórica das agências de segurança pública e as políticas de segurança ancoradas no combate ao criminoso e não na dinâmica da criminalidade, intervindo nas causas, por exemplo, há ações reativas e a utilização de técnicas e tecnologias de vigilância dos alunos, agora os “suspeitos”.
Essa lógica, que também está presente no controle de outros crimes, reafirma a necessidade da consolidação de estudos sobre Segurança Pública, estudos criminológicos e das Ciências Policiais como fios condutores de outros conhecimentos científicos para a compreensão da criminalidade e para a construção de técnicas de prevenção e intervenção, com protocolos de ações fundamentados. Todavia, há poucos momentos ou fontes fomentadoras para tal processo, como o Governo Federal, por exemplo, que podem atuar como propositor e coordenador desse processo. Até esse momento, veremos caça aos suspeitos e a inimigos sem combater a causa da criminalidade.