Múltiplas Vozes 28/02/2024

O golpe do amor

A criminalidade é inventiva e vai inventando ou adaptando alguns crimes às mudanças que ocorrem na sociedade

Compartilhe

Guaracy Mingardi

Analista criminal e membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública

Em matérias recentes, alguns órgãos de imprensa paulistas têm dito que existe um novo golpe na praça. Uns chamam de Golpe do amor, outros de Golpe do Tinder. Ele consistiria no seguinte: um indivíduo, homem ou mulher, marca encontro por um aplicativo com desconhecido e acaba roubado ou coagido a entregar a um dos golpistas dinheiro, celular, cartões de crédito. Ou mesmo sequestrado, no modelo relâmpago, quando é obrigado a sacar dinheiro, por Pix ou cartão. Depois é solto num local ermo.

Existem dois problemas com essa interpretação jornalística. Primeiro que isso, muitas vezes, não é um simples golpe, mas realmente um roubo. Em segundo lugar, nada disso é novo. Ocorre, com algumas variações, há cem anos. Desde a República Velha, que terminou em 1930, existem notícias de crimes afins.

A única novidade é o uso de determinadas redes sociais para isso. Existem inúmeros relatos centenários de pessoas, normalmente mulheres, que conheciam alguém por meio de correspondência normal – cartas enviadas pelo correio. Depois de um certo tempo, certas da paixão do correspondente, terminavam enganadas e/ou roubadas por ladrões mais sofisticados ou simples golpistas. A grande diferença é que, por conta da maior demora do correio, “preparar a vítima” demorava, há algumas décadas, muito mais tempo. Ela tinha de ser levada ao encontro do suposto enamorado com seus bens em uma maleta, que seria subtraída por ele ou algum cúmplice. Quando se desse conta, o golpista já teria sumido e estaria engordando nova vítima para a degola.

Outra modalidade, cujos relatos são ainda mais antigos, é a do golpe do suadouro, ou suador. As vítimas, normalmente homens à procura de relações extraconjugais, quase sempre bêbados, eram atraídos por prostitutas para determinado local. Ali, durante a relação, alguém esvaziava seus bolsos, deixando a carteira, mas levando o dinheiro. Muitas vezes o indivíduo só percebia quando ia pagar a profissional. Então, além de perder o dinheiro, ainda ficava tentando explicar para ela, ou ao cafetão que aparecia rapidamente após alguns berros, que não sabia o que tinha acontecido, que ia pagar logo que pudesse etc., e depois sumia do pedaço, pegava o beco, como diriam os malandros atuais, aliviado por sair ileso.

Uma modalidade desse golpe era com uma mulher, supostamente casada, que atraia alguém para seu apartamento, ou quartinho num cortiço. Durante o ato aparecia o marido, ou namorado, às vezes acompanhado de um cúmplice, que os “pegava em flagrante”.  Aí era uma gritaria, com o “marido” chamando a mulher de “puta”, ela se desculpando, ele dizendo que ia matar o canalha que seduzira sua mulher, e por aí vai. Depois de uns minutos, a coisa ficava um pouco mais calma e o “pato” deixava dinheiro para se livrar. Outra prática era buscar nos documentos dele nome e avisar que ia contar para sua mulher. Coisas do tipo. E aí vinha uma chantagem que normalmente era de um só ato. A vítima pagava determinada quantia que seria a primeira de algumas parcelas. E que, na verdade, era a única. Nenhum malandro que se preze iria prolongar o golpe.

A modalidade mais próxima da atual era simplesmente atrair a vítima para um local ermo, mesmo que fosse ao ar livre, e roubá-lo como manda o figurino. Com armas e/ou simples ameaças de agressão. Um caso similar, relativamente recente, foi de três “travestis” na região da Praça da República, centro de São Paulo. Começaram a roubar alguns dos clientes. Muitas vezes, ameaçando com estilete. O alvo era bem escolhido, sendo indivíduos portadores de aliança, portanto em princípio casados, e que não dariam queixa, com medo da reação dos cônjuges. Só foram pegos porque um deles voltou ao local com um amigo para retomar o dinheiro e foi ferido com um instrumento cortante. Acabou no hospital e virou um caso de polícia.

A maioria desses roubos/golpes está bem documentada na literatura criminal, inclusive a expressão “suador” aparece no Manual de Investigação Policial, do Delegado de Polícia Coriolano Cobra, cuja primeira edição data de 1956. Segundo ele, a expressão vem do “furto praticado durante a cópula carnal. Enquanto uma mulher pratica o ato sexual, outra, penetrando no quarto, ou que já está escondida no mesmo, furta dinheiro ou objetos do bolso do homem. O suador é praticado, também, com o concurso de homens”.

Como já mencionei em outros artigos, a criminalidade é inventiva e vai inventado ou adaptando alguns crimes às mudanças que ocorrem na sociedade. E as novas modalidades são espalhadas boca a boca nas ruas ou nas cadeias, com isso cada vez mais criminosos imitam os que iniciaram a onda. E a polícia, quando se inteira das novidades, corre atrás do prejuízo e aos poucos vai se organizando para enfrentar aquele tipo de crime. Portanto, nada de novo no front.

Newsletter

Cadastre e receba as novas edições por email

Captcha obrigatório
Seu e-mail foi cadastrado com sucesso!

EDIÇÕES ANTERIORES