Múltiplas Vozes 06/10/2022

O Fórum Brasileiro de Segurança Pública: coalizões de governança e accountability para a democracia

O FBSP favoreceu a atuação intersetorial e multidisciplinar visando à reforma institucional da segurança pública

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Francisco Thiago Rocha Vasconcelos

Professor da Universidade Internacional da Integração da Lusofonia Afro-Brasileira (Unilab), no Ceará. Bacharel em Ciências Sociais e Mestre em Sociologia pela Universidade Federal do Ceará (UFC); Doutor em Sociologia pela Universidade de São Paulo (USP). Membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública

A partir desta edição, o Fonte Segura publica uma série de artigos que fazem parte do livro “Estatísticas de Segurança Pública: Produção e uso de dados criminais no Brasil“, editado por Renato Sérgio de Lima e Betina Warmling Barros. O quinto livro editado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública reúne 21 capítulos sobre como dados criminais foram sendo produzidos e utilizados no país e conta, a partir do relato de casos e experiências práticas, como questões políticas, teóricas e metodológicas foram sendo tratadas. É um livro que serve tanto como registro sistemático histórico inédito dos papéis políticos e sociais das estatísticas criminais, quanto como descrição dos esforços feitos para que tais dados fossem insumos para a modernização da segurança pública e da atividade policial. Confira o texto na íntegra, no Capítulo 21 do livro, acessando aqui. 

 

Em 16 anos, o Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) se tornou um centro de interseções entre grupos na democratização do campo da segurança pública no Brasil. O seu protagonismo deve ser explicado por seu desenho institucional, sua abrangência de atuação e sua rede de patrocínios e parcerias, mas também pela forma como alinhou três vínculos: 1) o legado da produção acadêmica sobre a segurança pública nas ciências sociais; 2) o diálogo com os movimentos sociais; 3) o ponto de vista dos atores da segurança pública. Através desses vínculos, o FBSP favoreceu a atuação intersetorial e multidisciplinar visando à reforma institucional da segurança pública. Porém, renunciou a uma simples expertise confinada no “gerenciamento” da segurança pública ao se alinhar a demandas históricas da sociedade civil, de trabalhadores da segurança pública e de operadores do direito, a saber: a revisão do marco constitucional da segurança pública, a construção de interlocuções mais efetivas entre entes federativos e setores governamentais e a democratização desse campo de governança com adoção de práticas embasadas em evidências científicas.

Caracterizado pela concorrência propositiva em relação ao Estado por meio da cobrança de políticas públicas, o FBSP produz um efeito de exemplo, pois, através da organização de dados e de informações, incentiva organizações da segurança pública a atualizar e modernizar seus procedimentos. Ou seja, ele vincula a denúncia a uma pressão sobre as insuficiências de dados, a prestação de contas e a criação de indicadores, que servem tanto à modernização do Estado, na forma de parcerias, como a grupos da sociedade civil interessados em pautar o tema politicamente e na imprensa, além de criar conexões com pesquisas universitárias e aplicadas. Nesse processo, firmou uma série de parcerias, como junto à SENASP na construção do Sistema Nacional de Estatísticas de Segurança Pública e Justiça Criminal (SINESPJC) e ao Tribunal de Contas da União (TCU), que elaborou acórdão recomendando à SENASP de somente repassar recursos para órgãos de segurança pública que divulgam suas estatísticas, além de produzir o Índice de Governança em Segurança Pública que, desde 2018, passou a ser feito em parceria com o FBSP.

O FBSP, ao inovar nas abordagens das informações e dos indicadores, tem ocupado “vácuos institucionais” através da tradução, interpretação e reformulação de classificações e categorias estatísticas, transformando-as em bens públicos. Os dados em segurança pública não seriam apenas subprodutos de novas tecnologias e sistemas, mas, através da transparência, do controle e da prestação de contas (accountability), tornar-se-iam ferramentas de explicitação de problemas, de busca de soluções e de modernização organizacional. Entre os seus produtos institucionais, o Anuário Brasileiro de Segurança Pública é o que melhor demonstra esse trabalho. Nele, destacam-se questões metodológicas dos desafios do acesso à informação, da forma de cálculo e da qualidade, comparabilidade e compatibilidade entre as estatísticas policiais, os dados da segurança pública e os do Sistema de Informações sobre Mortalidade do Ministério da Saúde (SIM/DATASUS).

Outro avanço foram as discussões metodológicas sobre a qualificação estatística do homicídio doloso e sobre o registro e a definição de letalidade policial, da vitimização policial e de mortes violentas. Qualificar o tipo de violência que resultou na morte de uma pessoa por outra, discriminando o conjunto de possibilidades de eventos e como são classificados pelas polícias em cada unidade da federação, bem como que eventos são porventura excluídos da classificação sem critério metodológico, desafiavam a credibilidade das bases de dados e interrogava técnicos e pesquisadores. Essa falta de padronização na sistemática de coleta e classificação dos dados inviabilizaria o conhecimento mais circunstanciado das realidades locais e atrapalharia o planejamento de políticas públicas. Como alternativa, o FBSP trabalhou com a classificação de Mortes Violentas Intencionais (MVI), incluindo homicídio doloso, latrocínio, lesão corporal seguida de morte, mortes de policiais e mortes decorrentes de intervenções policiais em serviço e fora (letalidade policial). As MVI permitem englobar estatísticas policiais e do SIM/DATASUS, conferindo uma padronização para organizações de planejamento e monitoramento da sociedade civil em relação aos dados policiais, que costumam utilizar conceitos mais específicos ou de abrangência relativa, como o de Crime Violento Letal Intencional, criado pela SENASP em 2004 e que não soma mortes decorrentes de intervenção policial. Além disso, o registro de “pessoas desaparecidas” também passou a ser considerado um indicador para subsidiar análises sobre sua relação com registros de homicídios, dentre outras políticas.

Parte dessas mudanças foi, desde 2012, perpassada pela problematização do excesso de violência, de vitimização e de letalidade policial no Brasil. Como exemplo, houve a mobilização pela mudança no registro de mortos por agentes do Estado, de “resistência seguida de morte” ou “auto de resistência” para “homicídio decorrente de intervenção policial”. Para refinar o diagnóstico, o Anuário reuniu reflexões que indicavam o referido quadro como prática resiliente que se fundamenta no discurso/mito do “policial herói”, da segurança como guerra/combate ao inimigo e da falácia do “bandido bom é bandido morto”.

Outra mudança foi em relação ao acompanhamento dos registros de “morte por arma de fogo” e “porte ilegal de armas de fogo”, quando, a partir de 2013, com os 10 anos de aprovação do Estatuto do Desarmamento, a política de controle de armas tornou-se prioritária. Em parceria com o Instituto Sou da Paz, o Anuário passou a incorporar dados sobre a quantidade de armas furtadas ou roubadas e a quantidade de registros de armas novas na Segurança Privada, o monitoramento da evolução da entrada de armas no mercado legal, as dinâmicas da circulação interestadual de armas e munições, e a insuficiência das ações estatais. Já a partir de 2018 se acirram as críticas às políticas estatais, principalmente com a aprovação das regras para Caçadores, Atiradores esportivos e Colecionadores (CAC’s), que dobrou o número de armas de civis em três anos. O tema tem suscitado discussões sobre a circulação de armas para facções e milícias, além de explicações sobre o decréscimo ou acréscimo de violências.

Nesse cenário, o Anuário dialogou com estudos que buscaram fornecer referenciais mais complexos. Nesse sentido, o 13º Anuário (2019) apresenta um modelo analítico que propõe a separação dos homicídios brasileiros em cinco grupos de acordo com regimes de conflito que eles expressam: mortes entre facções criminais, execuções internas e conflitividade de rua em espaços regulados por grupos criminais; mortes ocorridas entre as polícias e o mundo do crime; mortes por feminicídios; mortes por latrocínios (grupo 4); e mortes de pessoas LGBTQIA+. A “cena criminal” brasileira mudou, exigindo novos olhares sobre a dinâmica dos homicídios.

Essa mudança representa uma ampliação de foco no Anuário que, desde então, tem oferecido maior amplitude e profundidade analítica sobre fenômenos relacionados à violência de gênero, e à violência e desigualdade racial. Dessas novas abordagens, a violência contra a mulher tem um histórico um pouco mais desenvolvido, ao menos desde 2016, a partir de pesquisa em parceria com o Datafolha a respeito das violências sexuais. No 11º Anuário (2017), o tema da perícia no caso de estupros se fez presente, além dos resultados da pesquisa do DataSenado com o Observatório da Mulher contra a Violência (OMV) sobre Delegacias Especializadas de Atendimento à Mulher (DEAMs). A partir dessa edição, foram incorporados os registros de feminicídio e, desde então, cresceram a coleta de dados e a discussão metodológica sobre o tema, bem como a projeção midiática.

Em relação à questão racial, destaca-se a sobrerrepresentação de negros entre as vítimas letais, questão articuladora de diferentes vitimizações pautadas pelo FBSP nos anos seguintes. Por meio de novos indicadores, foi possível visualizar o impacto da desigualdade racial na juventude, como é o caso do Índice de Vulnerabilidade Juvenil à Violência, existente desde 2008 e atualizado em 2015 como Índice de Vulnerabilidade Juvenil à Violência e Desigualdade Racial, em parceria com a Secretaria Nacional de Juventude e UNESCO. As estatísticas sobre injúria racial também foram incorporadas, sinalizando o aumento de importância do tema nos anos seguintes, com discussões mais circunstanciadas sobre as formas de registro da injúria racial e do racismo.

Apesar do avanço no registro de dados, o “estado da arte” das condições de coleta e sistematização de dados seria de dificuldades. No caso da população negra, além do “apagamento racial” nas estatísticas criminais, o registro do número de casos de injúria racial é muito maior que os de racismo. Em relação à população LGTQIA+, a estagnação da cobertura no último biênio (2019-2021), o descaso e o pouco interesse político-institucional de produzir dados revelam desprezo pela promoção de seus direitos, com barreiras desde o atendimento às vítimas, ao registro e à investigação de casos de violência LGBTfóbica (muitas das vezes, marcados por revitimização, violência simbólica e psicológica).

Através dessa síntese, buscamos demonstrar como o FBSP, ao ocupar “vácuos institucionais”, lançou o desafio de estruturar um sistema nacional de estatísticas criminais em diálogo com pesquisadores, atuando também na tradução de dados e pesquisas para a esfera legislativa, executiva e para o debate público através da imprensa. Além disso, o FBSP buscou incluir, no interior da lógica operativa do Estado, agendas de reivindicação da sociedade civil e dos trabalhadores da segurança pública, visando meios para romper o insulamento das organizações de segurança pública, o refúgio na opacidade de dados e nos indicadores monopolizados por setores específicos. Essas ações são um conjunto fundamental para a democratização e resistência às derivas autoritárias do Estado e da sociedade brasileira.

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