O fetiche da tecnologia
Existe uma crença na capacidade das novas tecnologias em resolver problemas que ainda não foram devidamente identificados, sem que seja necessário repensar doutrinas, processos organizacionais e sistemas de treinamento. É uma crença mágica nos poderes da tecnologia para o setor de segurança pública
Arthur Trindade M. Costa
Professor de sociologia da Universidade de Brasília e membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública
É cada vez mais intenso o uso de novas tecnologias na área de segurança pública. Em vários países, as organizações policiais têm adquirido sistemas de videomonitoramento, cercamento eletrônico, centros integrados de operações, câmeras de reconhecimento facial e câmeras corporais. Na área de investigação criminal temos observado a implantação e integração de grandes bases de dados e a montagem de bancos de perfis genéticos. A tecnologia também tem sido utilizada para melhorar a integração das polícias com o sistema de justiça criminal, seja para executar as medidas protetivas de violência contra mulheres, seja para otimizar o processamento de ocorrências policiais no âmbito dos tribunais. O uso de tablets embarcados nas viaturas já é uma realidade em algumas polícias.
Sem dúvida, o uso das novas tecnologias pode ser muito proveitoso para o aperfeiçoamento da segurança pública. Os novos sistemas tecnológicos são caros e exigem investimentos vultosos. Portanto, a aquisição de novas tecnologias requer muito planejamento para que os investimentos não sejam desperdiçados.
Desde sua criação, no início do século XIX, as organizações policiais têm buscado introduzir novidades tecnológicas para facilitar o seu trabalho. A incorporação de novas tecnologias, entretanto, não é um processo simples. Ao contrário, são processos cheios de disputas internas sobre a melhor forma de utilizá-las. É natural que seja assim, pois a incorporação destas ferramentas pode levar a mudanças na doutrina de policiamento. Alguns grupos irão ganhar poder e prestígio e outros iram perdê-los.
Um exemplo do impacto da introdução de novas tecnologias na doutrina de policiamento foi a criação do policiamento motorizado. A partir da década de 1950, com a popularização dos automóveis e o aperfeiçoamento dos sistemas de comunicações, algumas polícias introduziram uma das maiores novidades no policiamento: a radiopatrulha. Uma viatura, dotada de rádio, capaz de se comunicar com uma central para atender com rapidez as emergências.
O radio-patrulhamento foi mais do que uma revolução tecnológica. Representou uma mudança no paradigma de policiamento. Impactou no treinamento, na doutrina, na logística. Em resumo, mudou a forma de fazer e de pensar o policiamento. Essa mudança levou décadas para ser concretizada. Enquanto a nova doutrina não estava elaborada, viaturas tornaram-se obsoletas pela falta de motoristas habilitados, de rádios confiáveis e de centrais de comunicação bem organizadas. Ou seja, muito dinheiro e energia foram desperdiçados.
Incorporar novas tecnologias não se resume a aquisição de equipamentos. É necessário desenvolver doutrina específica, repensar o planejamento, reestruturar o treinamento e redimensionar a avaliação de desempenho. O trabalho de controle e supervisão da atividade policial também precisa ser alterado. Sem isso, os novos sistemas tecnológicos tornam-se inúteis.
É o que tem acontecido em alguns estados brasileiros, onde novas tecnologias têm sido adquiridas sem que se tenha definido claramente o problema que elas deveriam resolver e a doutrina necessária para implantá-las. Assim, gestores de polícias correm para as feiras de exibição de novos equipamentos para encher os carrinhos de compras. Representantes de empresas desenvolvedoras de tecnologia buscam gestores de polícia para vender soluções.
É o fetiche da tecnologia. A crença na capacidade das novas tecnologias para resolver problemas que ainda não foram devidamente identificados sem que seja necessário repensar doutrinas, processos organizacionais e sistemas de treinamento. É uma crença mágica nos poderes da tecnologia.
Nos últimos anos, alguns estados adquiriram sistemas de videomonitoramento (CCTV). Em alguns casos, esses sistemas foram implantados sem que antes fosse elaborado um projeto que definisse claramente os objetivos e metas a serem alcançados. De forma geral, os projetos apresentados não passavam da descrição e justificativa para aquisição dos equipamentos, sem prever todas as ações necessárias para o seu funcionamento adequado como treinamento de equipes, elaboração de protocolos e desenvolvimento de doutrina. Assim, a “solução” foi comprada antes mesmo de o problema ter sido elaborado. Os resultados não poderiam ser mais desastrosos: desperdício de recursos, subutilização dos equipamentos e abandono do projeto. Em muitos estados, os sistemas de videomonitoramento se tornaram verdadeiros “elefantes brancos”.