Múltiplas Vozes 18/01/2023

O dia 8 de janeiro é um marco para a segurança pública

Não basta apontar eventuais negligências e omissões criminosas. A manifestação que manchou a democracia brasileira não teria acontecido sem que houvesse politização, cooptação, radicalização das polícias e das Forças Armadas

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Arthur Trindade M. Costa

Professor de sociologia da Universidade de Brasília e membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública

Não se pode dizer que tenha sido surpresa o que aconteceu em Brasília no domingo, 8 de janeiro. A invasão do Palácio do Planalto, do Congresso Nacional e do Supremo Tribunal Federal de certa forma era uma tragédia anunciada. Nas semanas anteriores, as agências de inteligência produziram informes relatando o tamanho da manifestação e a disposição para a violência por parte dos manifestantes golpistas.

Apesar das abundantes informações sobre o tamanho da manifestação e a intenção dos golpistas, o aparato de segurança falhou fragorosamente. Os poucos policiais que policiavam a Esplanada dos Ministérios não foram capazes de impedir que os golpistas entrassem nos prédios da Praça dos Três Poderes. Não havia tropas de choque da PM na Esplanada dos Ministérios capazes de impedir a passagem dos manifestantes. Os efetivos de reforço do Exército não estavam estacionados na garagem do Palácio do Planalto. Assim, os prédios foram depredados e a democracia foi ultrajada.

Há muitas perguntas a serem respondidas. A Secretaria de Segurança Pública precisa explicar por que o protocolo inicial de policiamento de protesto não foi seguido. É difícil acreditar que tenha sido um erro de planejamento. O policiamento de protestos na Esplanada dos Ministérios é rotina da Secretaria de Segurança Pública, que faz isso há décadas. Normalmente o policiamento é bem feito. Foi o que aconteceu nas manifestações do 7 de setembro de 2022, quando as forças de segurança pública atuaram muito bem, impedindo a entrada de caminhoneiros na Esplanada dos Ministérios. O mesmo pode ser dito quanto à cerimônia de posse. A mudança no planejamento adotado pela Secretaria de Segurança Pública desorganizou todo o policiamento da Esplanada.

O Comando Militar do Planalto precisa explicar por que o Palácio do Planalto estava tão vulnerável. Cabe ao CMP proteger o Palácio do Planalto, o Palácio da Alvorada, o Palácio do Jaburu e a Granja do Torto. Para isso, ele dispõe de duas unidades de guardas: o Batalhão da Guarda Presidencial (BGP) e o Regimento de Cavalaria de Guardas (RCG). Embora possa agir em cooperação com as polícias, o CMP tem autonomia para planejar suas ações, não estando sujeito ao planejamento da Secretaria de Segurança Pública. No dia 8/1, apesar dos reiterados informes das agências de inteligência, não havia tropa de choque estacionada no subsolo do Palácio do Planalto como normalmente acontece nessas situações.

O Gabinete de Segurança Institucional, subordinado à Presidência da República, precisa explicar por que dispensou o reforço do policiamento previsto no plano inicial. Também é necessário averiguar se houve facilitação da entrada dos golpistas.

As Agências de Inteligência precisam explicar por que não tomaram conhecimento da “Festa da Selma”, codinome dado ao plano de invasão dos prédios. Em Brasília, o acampamento estava localizado a menos de 500 metros da sede do Centro de Inteligência do Exército. A invasão foi planejada nos acampamentos localizados nas portas dos quartéis. Para a manifestação de domingo, foram organizadas caravanas com manifestantes de várias partes do Brasil. Depois de dois meses de acampamentos, as agências já deveriam ter levantado os financiadores e executores da invasão.

O Comando da Polícia Militar do Distrito Federal precisa explicar por que não alertou o governador do risco que a mudança de planejamento implicava. O episódio manchou a imagem da PMDF. O dano está feito e levará tempo para ser revertido. É uma pena, pois a Polícia Militar vivia um dos seus melhores momentos. Graças aos trabalhos da PMDF e da Polícia Civil, as taxas de criminalidade no DF vêm diminuindo desde 2014. Ao mesmo tempo, as pesquisas têm mostrado que as taxas de confiança e satisfação dos cidadãos estão crescendo. É uma situação inusitada: descrédito no âmbito nacional e confiança no nível local.

Essas perguntas precisam ser respondidas para que as responsabilidades sejam apuradas. Mas não basta apontar eventuais negligências e omissões criminosas. A manifestação que manchou a democracia brasileira não teria acontecido sem que houvesse politização, cooptação, radicalização das polícias e das Forças Armadas.

Há tempos, estudiosos e gestores de segurança pública apontam para os perigos da politização das instituições militares. É cada vez mais frequente a atuação política de militares da ativa dentro dos quartéis. Graças à permissividade da nossa legislação eleitoral, o número de policiais e militares que se candidatam a cargos políticos cresce a cada eleição.

É preciso entender que a carreira dos militares, tanto das Forças Armadas (FFAA) quanto das polícias militares, carrega ônus e bônus. A legislação proíbe os militares da ativa de se manifestarem politicamente. É um ônus. Afinal de contas, os outros cidadãos são livres para fazer isso. Em contrapartida, dada sua natureza especial, os militares têm regime previdenciário diferenciado. É um privilégio que a maior parte da população não possui. Os policiais militares deveriam ter clareza sobre essa situação.

A cooptação das corporações militares, especialmente das polícias militares, também é frequente. Há uma tolerância com o trânsito de policiais pelos cargos civis de assessoramento e livre nomeação. É grande a quantidade de policiais afastados das suas funções para trabalhar em gabinetes de políticos, desembargadores e mesmo nas secretarias de governo.

O caso do ex-ministro Anderson Torres é revelador. Torres ingressou na carreira de Delegado Federal em 2003. Depois de passar 3 anos atuando como delegado em Roraima, ele retornou para Brasília, onde passou a desempenhar funções na Associação dos Delegados da Polícia Federal. Na sequência, foi cedido para o gabinete do deputado federal Francisco Francischini (PF-PR), onde trabalhou por 8 anos. Em 2019, foi nomeado Secretário de Segurança Pública do Distrito Federal e em 2021 foi nomeado Ministro da Justiça e Segurança Pública. Portanto, durante seus 19 anos de serviço, Torres atuou somente 3 anos como policial. No restante do tempo, atuou como sindicalista, assessor parlamentar e secretário estadual e ministro. Este não é um perfil de profissional moderno. Ao contrário, é o perfil de um profissional que fez carreira com base nas relações de compadrio e lealdade política.

Além da politização e cooptação, assistimos a um fenômeno novo: a radicalização de policiais e militares. O fenômeno tem sido verificado em outros países, como França e Alemanha. Trata-se da adesão às pautas da extrema direita por parte de militares da ativa e da reserva. Tais pautas não se restringem à defesa dos valores conservadores, incluem também atitudes antissistema como negação do sistema eleitoral, da justiça e da ciência. Pesquisas realizadas pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública mostram que uma parte significativa dos policiais brasileiros interage ativamente com sites e grupos radicais.

Além de cobrar respostas das autoridades responsáveis pelo policiamento no dia 8 de janeiro, é preciso exigir medidas que impeçam que isso se repita. Não há dúvida que é preciso punir os responsáveis. Essa é a tarefa da Polícia Federal e do Ministério Público Militar. Aos governos federais e estaduais cabe tomar medidas para inibir a politização, a cooptação e a radicalização. Sugiro a revisão da legislação eleitoral para impedir a presença de policiais-candidatos nas fileiras da polícia. É necessário discutir o regimento das polícias militares, para tornar a carreira policial mais profissional e menos interessante para aventureiros políticos. E finalmente sugiro uma profunda mudança no sistema de ensino policial para evitar a radicalização dos quadros.

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