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O desaparecimento de pessoas na Amazônia Ocidental

O processo de exploração predatória e indiscriminada das riquezas naturais da Amazônia não ocorre sem que a participação do Estado seja decisiva, por ação direta ou omissão

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Rodolfo Jacarandá

Professor Associado II da Universidade Federal de Rondônia. Líder do Grupo de Pesquisa Ética e Direitos Humanos CNPq/UNIR. Vice-Coordenador do Mestrado Profissional Direitos Humanos e Desenvolvimento da Justiça – DHJUS. Membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Site: www.rodolfojacaranda.com

O assassinato do jornalista Dom Phillips e do indigenista Bruno Pereira, no Vale do Javari, no Amazonas, coloca mais uma vez em evidência os altos índices de violência na Amazônia Ocidental brasileira. A região é formada pelos estados de Rondônia, Acre, Amazonas e Roraima, somando quase dez mil quilômetros de fronteiras – incluindo 4 tríplices fronteiras.

Os casos de pessoas desaparecidas, sobretudo aquelas que viviam e trabalhavam em regiões de conflito, raramente contam com a mobilização que levou ao encontro dos corpos de Dom e Bruno.

Em 2017, em Canutama, sul do Amazonas, divisa com o estado de Rondônia, um ex-brigadista do ICMBIO, Flávio Lima de Souza, e dois camponeses, Marinalva Silva de Souza e Jairo Feitosa, desapareceram numa área de terras federais. A área havia sido reintegrada pela Justiça Federal em favor do Incra e os três desaparecidos trabalhavam em colaboração com o órgão federal.

No caso do desaparecimento de Flávio, Marinalva e Jairo passaram meses sem que um simples inquérito policial tivesse sido instaurado.

Nem sempre o desaparecimento forçado ocorre em regiões inóspitas, de difícil acesso. Em janeiro de 2016, Ruan Hildebrand Aguiar, de apenas 18 anos, desapareceu depois de ser atacado, junto com outros quatro jovens, durante uma reintegração de posse pacífica, autorizada pela Justiça, numa fazenda localizada entre os municípios de Cujubim e Rio Crespo, em Rondônia.

O grupo de Ruan sofreu uma verdadeira caçada humana por homens que faziam a segurança privada da fazenda, durante mais de 10 horas. Dentre os seguranças, 17 policiais militares da ativa e o ex-sargento PM Moisés Ferreira de Souza. Moisés Souza foi um dos executores do massacre de Colniza/MT, em abril de 2017, no qual nove camponeses foram torturados e mortos. Três amigos de Ruan conseguiram escapar com vida, mas o corpo de um deles, Alysson Henrique Lopes, foi encontrado horas depois, dentro de um carro, carbonizado. Ruan nunca foi encontrado.

No Amazonas o desaparecimento forçado do jovem munduruku Josivan Moraes Lopes, de 18 anos, em agosto de 2020, guarda algumas semelhanças com o caso de Ruan: após a realização de uma operação da Polícia Militar do Amazonas na Terra Indígena Kwatá-Laranjal, Josivan desapareceu e seu irmão, Josimar Moraes Lopes, de 25 anos, foi encontrado morto, no igarapé Bem Assim, na região do rio Abacaxis, entre as cidades de Borba e Nova Olinda do Norte, distante pouco mais de 120 km de Manaus.

Altas taxas de desaparecimento de pessoas

O que chama a atenção de autoridades e pesquisadores, contudo, não é tão somente o número alarmante de desaparecimentos forçados nessas regiões de conflitos.

Nessa porção ocidental da Amazônia brasileira, dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública mostram que o estado de Rondônia é o campeão em desaparecimento de pessoas, ostentando a terceira maior média do país nos últimos 10 anos. Roraima aparece na quinta posição.

Em 2020, Rondônia só ficou atrás do Distrito Federal, com 60 desaparecimentos por 100 mil habitantes. Somente em 2019 e 2020 mais de 2300 pessoas desapareceram em Rondônia.

Tabela 1: Desaparecimento de pessoas

Fonte: Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2020 e 2021

Somando Rondônia, Acre, Roraima e Amazonas, apenas em 2019 e 2020, mais de 4550 pessoas desapareceram.

Nesse mesmo período, os quatro estados reportaram que apenas 240 pessoas foram encontradas – pouco mais de 5% desse total*.

 

Tabela 2: Total de desaparecidos na Amazônia Ocidental – 2020

Fonte: Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2021

É quase impossível saber a causa de tantos desaparecimentos, assim como é muito difícil apontar o percentual de pessoas desaparecidas que estiveram envolvidas em conflitos ambientais. Mas a possível conexão entre esses indicadores aponta para um cenário trágico e sem perspectiva de soluções à vista.

Numa associação que gera muitas reflexões, em 2021 Rondônia voltou a ser o estado do país com o maior número de mortos em conflitos no campo, superando o Pará e o Mato Grosso, estados territorialmente muito maiores. Isso já havia acontecido em 2015 e os números de 2022 já indicam a proximidade de novos recordes.

A identidade muito particular dos conflitos amazônicos

Os conflitos ambientais na Amazônia Ocidental são causados pelo avanço e sobreposição da grilagem de terras públicas em sua maioria federais, pela pesca predatória ou esportiva irregulares, pela extração ilegal de madeira, pelos garimpos ilegais e pelo aumento da procura por rotas de transporte de cocaína, provenientes da Colômbia, do Peru e da Bolívia.

Além da conhecida fragilidade institucional para lidar com a extensão da criminalidade, é necessário enfrentar ainda os muitos conflitos de competência decorrentes das sobreposições normativas que afetam áreas de enormes dimensões.

Essas disputas colocam a União e seus órgãos responsáveis em rota de colisão com governos estaduais.

A esse cenário caótico somam-se ainda as instituições do sistema de justiça, cada uma delas exercendo suas competências sem que haja, entretanto, um esforço coordenado de proteção coletiva dos muitos direitos fundamentais em risco.

Nesse ambiente violentamente conflagrado, comunidades indígenas e tradicionais vivem sob ameaça permanente e são as mais fragilizadas. Grandes regiões de floresta, mais isoladas, que ainda conseguiam resistir aos impactos da criminalidade, estão se transformando em novos alvos para todo tipo de ilegalismo.

Esse movimento tem sido fortalecido ainda pela fragilização dos meios de controle e de proteção do meio ambiente provocados pelo governo federal nos últimos anos.

 

Desmonte das instituições de fiscalização e proteção

Em 2021 o IBAMA utilizou apenas 41% do orçamento para fiscalização ambiental e outros órgãos importantes, como ICMBIO e FUNAI, têm perdido, sistematicamente, pessoal e receita.

Em abril de 2020 a FUNAI publicou uma instrução normativa (nº 9) que torna mais fácil a venda de terras que estejam em disputa com indígenas, cujos processos de demarcação não estejam finalizados ou estejam aguardando finalização.

Esse foi apenas mais um grande passo normativo dado na direção de destruir os mecanismos já frágeis de proteção a territórios indígenas. A FUNAI possui hoje mais de 2330 cargos vagos, contra apenas 1717 servidores na ativa.

O Vale do Javari é a região com a maior concentração de povos isolados ou em isolamento voluntário do planeta.

Na Amazônia brasileira, os registros da FUNAI apontam 114 povos isolados ou em isolamento voluntário, como são chamados os indígenas que vivem afastados de outros grupos, indígenas ou não. Somente no Vale do Javari seriam 16 povos (segundo o Instituto Socioambiental esse número pode chegar a 26).

O crescimento dos grupos extrativistas de madeira, de pesca predatória ou esportiva irregular, e a multiplicação de áreas de garimpo ilegal colocam cada um desses povos em risco de extinção.

É importante anotar que esse processo de exploração predatória e indiscriminada das riquezas naturais da Amazônia não ocorre sem que a participação do Estado seja decisiva, por ação direta ou omissão.

Conforme aumenta a pressão por ocupação e exploração das terras e vegetações ainda intocadas, a política sistemática de destruição dos mecanismos de defesa da região é um sinal evidente de que a curva de ilegalismos seguirá crescendo, sem maiores obstáculos.

Por trás do assassinato de Bruno e Dom existem muitos indicativos de que a violência na Amazônia Ocidental seguirá aumentando.

*O número de pessoas encontradas em 2019 e 2020 não se refere, necessariamente, às pessoas que desapareceram em 2019 e 2020. Os estados ouvidos não informaram como esse dado é produzido. Os dados sobre desaparecimentos estão no Anuário do Fórum Brasileiro de Segurança Pública de 2011 a 2021.

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