Múltiplas Vozes 11/06/2025

O desafio persistente do tráfico de armas no Brasil

Um olhar sobre a rede de repressão

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Daniel Ferreira de Melo Belchior

Delegado de Políca na Polícia Civil do Espírito Santo; professor da Academia de Polícia Civil do Espírito Santo; meste em Direito pela UFES; MBA em Gestão e Governança em Segurança Pública pela UnB

O tráfico de armas de fogo representa uma das mais graves ameaças à segurança pública no Brasil, alimentando a violência urbana, fortalecendo o crime organizado e minando os esforços estatais para a pacificação social. A complexidade deste fenômeno exige uma rede de repressão robusta, coordenada e eficiente, capaz de atuar em diversas frentes, desde as rotas de entrada ilegal de armamento até a desarticulação das organizações criminosas que se beneficiam dessa atividade ilícita.

A rede de enfrentamento ao tráfico de armas no país é composta por uma gama variada de atores, incluindo as polícias federal, rodoviária federal, civis, científicas e militares dos estados e as Forças Armadas, além dos órgãos do sistema de justiça criminal. Cada uma dessas instituições possui atribuições específicas, mas o sucesso no combate a esse tipo de crime depende fundamentalmente da capacidade de integração, compartilhamento de informações e operações conjuntas.

No entanto, um diagóstico mais amplo revela desafios significativos que comprometem a eficácia dessa rede. Além da problemática do tráfico interno e da fabricação ilícita, a extensão territorial brasileira, com suas extensas fronteiras, facilita a entrada clandestina de armas. A sofisticação das organizações criminosas, que utilizam maneiras cada vez mais elaboradas para o transporte e distribuição, impõe constante necessidade de atualização das estratégias de repressão.

Some-se a tudo isso a dificuldade de promoção da interoperabilidade entre os sistemas que fazem a gestão das armas de fogo em território nacional e a resistência no compartilhamento de seus respectivos bancos de dados (Fonseca et al, 2006), que são fundamentais para a identificação e o rastreamento das armas de fogo apreendidas no país e para o início de investigações que visam à identificação de rotas, financiamento e organizações criminosas envolvidas no tráfico de armas.

Muito embora existam iniciativas para moralizar o acesso, a maioria dos integrantes da rede ainda opera com limitações significativas (Brasil, 2022). De acordo com o TCU, o SINARM e o SIGMA, sistemas de órgãos de regulação de armas no Brasil (Polícia Federal e Exército, respectivamente), não são interoperacionais e não permitem compartilhamento adequado de informações. Nesse sentido, sob o prisma da rede, a fragmentação das informações e a ausência de uma coordenação nacional entre as diferentes forças de segurança são consideradas fragilidades crônicas (Brasil, 2022; Fonseca et al., 2006).

Por outro lado, a carência de recursos humanos especializados, tecnológicos e financeiros em muitas instituições também limita a capacidade investigativa das agências integrantes da rede. (Langeani, 2022).

Esse, contudo, não é apenas um problema do Brasil, o impacto do tráfico ilegal reflete-se em indicadores de violência de diversos outros países. Na região sul-americana, poucas atividades econômicas cresceram tanto quanto as realizadas pelo crime organizado, incluindo o tráfico de drogas e armas, sendo o combate ao tráfico de armas um dos grandes desafios regionais da América do Sul (Cossul & Jaeger, 2016).

Apesar dos obstáculos, algumas potencialidades podem ser exploradas. A criação de unidades especializadas nas polícias, a exemplo da DESARME (Delegacia especializada em armas, munições e explosivos) no âmbito das Polícias Civis, o investimento em inteligência e a utilização de tecnologias de rastreamento são iniciativas promissoras. A cooperação internacional, por meio de acordos bilaterais e multilaterais, também se mostra essencial para interceptar o fluxo transnacional de armas. Ademais, a combinação de estratégias repressivas e preventivas, quando implementadas de forma coordenada e sistemática, pode produzir resultados mais efetivos no combate ao tráfico de armas na redução dos índices de violência armada.

No caso da rede de repressão ao tráfico de armas, o modelo atual brasileiro, baseado em governança compartilhada, tem se mostrado ineficaz, considerando os dados de apreensões, o avanço do crime organizado e as constatações do TCU. Esta configuração, embora permita a participação de múltiplos atores com competências específicas, apresenta fragilidades significativas no que tange à integração e ao compartilhamento de informações. O ciclo da informação que alimenta os bancos de dados do SINARM e do SIGMA, fundamentais para o rastreamento e controle de armas, depende essencialmente da comunicação e interoperabilidade entre os participantes da rede, o que, na prática, ocorre de forma protocolar e burocrática, sem a fluidez necessária para o enfrentamento eficaz do problema.

A transformação da atual estrutura de governança compartilhada para um modelo de governança com uma organização líder (Provan & Kenis, 2008) poderia representar um avanço significativo na eficácia da rede de repressão ao tráfico de armas. Os casos bem-sucedidos de redes interorganizacionais no Brasil demonstram que a presença de uma autoridade central, responsável pela coordenação das ações e pela gestão do fluxo de informações, pode potencializar os resultados da rede, superando as limitações impostas pela fragmentação atual e contribuindo para um enfrentamento mais efetivo do tráfico de armas no país.

Este modelo, similar ao adotado pela Rede Nacional de Laboratórios de Tecnologia contra Lavagem de Dinheiro (REDE-LAB) no combate à lavagem de dinheiro e à Rede Nacional de Recuperação de Ativos (RECUPERA) na recuperação de ativos relacionados à prática ou ao financiamento de infração penal, permitiria estabelecer um ambiente de cooperação e compartilhamento de tecnologias, metodologias, técnicas e dados de análise entre os integrantes da rede, promovendo a multiplicação do conhecimento e o desenvolvimento de equipes técnicas especializadas.

Para avançar de forma consistente, é imperioso que o Brasil invista na construção de uma política nacional de enfrentamento ao tráfico de armas verdadeiramente integrada, que priorize a inteligência, a capacitação contínua dos agentes, a modernização tecnológica e a cooperação interagências, mas que também tenha a sua atuação em rede revisada, por meio da construção de um modelo de governança que preveja a presença de uma organização líder. Somente com uma abordagem sistêmica e coordenada será possível reduzir o impacto devastador do tráfico de armas na sociedade brasileira.

 

Referências

Brasil. Tribunal de Contas da União (TCU). (2022). Relatório de Auditoria de Controle, GI – CLASSE v – Plenário TC 042.141/2021-4.
Cossul, N. I., & Jager, B.C. (2016). O papel da infraestrutura no combate aos ilícitos transfronteiriços na América do Sul. Revista Brasileira de Estudos de Defesa, 3 (1).
Fonseca, F., Keinert, R., Blikstein, I., Bueno, L., Storino, F., & Sano, H. (2006). O Sistema Nacional de Armas (Sinarm) como sistema de gerenciamento do estoque legal de armas no Brasil: Uma contribuição às políticas públicas. Cadernos Gestão Pública e Cidadania, 11 (48).
Langeani, B. (2022). Violência armada no Brasil e a performance do Estado brasileiro no combate ao tráfico de armas e munições. In Violência no Brasil: Desafios das periferias (pp. 83-96). Fundação Perseu Abramo.
Provan, K.G., & Kenis, P. (2008). Modes of network governance: Structure, management, and effectiveness. Journal of Public Administration Research and Theory, 18 (2), 229-257.

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