Segurança no Mundo 26/04/2023

O combate às gangues em El Salvador

As medidas extraordinárias reduziram a violência fora das cadeias, quebraram as redes de extorsão das gangues e melhoraram significativamente a percepção de segurança da população. Por outro lado, o estado de direito foi ferido de morte, pois o governo Bukele acabou com a independência da Justiça

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Ignacio Cano

El Salvador é um pequeno país à beira do Oceano Pacífico, na América Central, que caberia umas 400 vezes no mapa do Brasil. A sua economia dependeu historicamente do cultivo do café e, mais recentemente, das remessas enviadas pelos migrantes salvadorenhos nos EUA, num fluxo migratório acelerado pela guerra civil entre 1980 e 1991. Na sua chegada a Los Angeles, os jovens salvadorenhos, como os de outros países latinos, formaram gangues de bairro vinculadas a pequenos territórios (a rua 18, a rua 13, etc.) como uma forma de autoproteção e de autoafirmação cultural num ambiente desfavorável. Essas gangues se envolveram em condutas antissociais e crimes, além de disputar o território entre elas.

A política dos EUA com os migrantes que cometem crimes, até hoje, é a expulsão aos seus países de origem no fim do cumprimento das penas. Quando esses jovens salvadorenhos, duplamente desarraigados do seu país de origem e do seu país de acolhida, foram expulsos de volta a El Salvador no início dos anos 90 encontraram milhares de outros jovens que tinham pertencido ao Exército e à guerrilha e foram desmobilizados com o fim do conflito armado. Todos eles possuíam conhecimento militar e/ou experiência com armas de fogo e não tinham muitas opções no mercado formal de trabalho. Os deportados recriaram as gangues de Los Angeles, agora chamadas de “maras”, conservando inclusive os nomes originais (Rua 13, Bairro 18) e expandindo-as num terreno fértil até torná-las autênticas organizações criminais com controle territorial de amplos territórios, forte estrutura interna e expansão internacional nos países vizinhos. Os traços culturais das gangues angelinas foram deixados de lado em prol dos aspectos econômicos vinculados ao crime, e os elementos identitários (rituais de iniciação, tatuagens, etc.) foram ressignificados como forma de evitar a deserção dos membros. Assim, o pertencimento à gangue era pelo resto da vida e a tentativa de saída podia ser paga com a morte. A venda de drogas ilegais foi sempre fonte importante de renda, mas as maras passaram progressivamente a se financiar sobretudo através da extorsão a todas as atividades cotidianas nas áreas controladas: transporte, comércio, inclusive a simples saída das pessoas das comunidades onde moravam passaram a ter de pagar um pedágio, criando um clima de intimidação e asfixiando a atividade econômica.

Na literatura internacional especializada, não há consenso sobre o a definição de gangue, palavra polissêmica que inclui desde agrupações juvenis para curtir o tempo livre que podem cometer ocasionalmente atos antissociais até estruturas consolidadas do crime organizado. Nesse continuum, as maras salvadorenhas passaram a representar esse último extremo, o de gangue como crime organizado transnacional.

A reação do Estado foi dupla e contraditória. Por um lado, endureceram-se a resposta policial e a legislação. Em 2003, o governo lançou o Plano Mano Dura, que permitia prender uma pessoa pela simples suspeita de pertencer a uma mara, em função de ter tatuagens ou de estar reunida com outros jovens numa esquina, medidas que a Corte Suprema de Justiça declarou posteriormente inconstitucionais. O aumento das prisões de supostos gangsters, longe de reduzir o poder das maras, acabou reforçando-as a partir das estruturas que se consolidaram na prisão, processo que o Brasil conhece muito bem. Como o experimento não funcionou, o governo seguinte, em 2004, seguiu uma tradição latino-americana: prometeu repeti-lo em dosagem mais elevada, o chamado Plan Súper Mano Dura, que teve destino semelhante.

Em paralelo a este endurecimento, governos nacionais de diverso signo ideológico, além de muitos governos locais, negociaram com as maras, fosse para conseguir o acesso de projetos oficiais às comunidades (algo que será familiar aos leitores do Rio de Janeiro), fosse para conseguir vantagens políticas durante as campanhas eleitorais (de novo, algo conhecido no RJ). Obviamente, essas negociações eram sigilosas e sempre negadas pelos respectivos governos. Em 2012, no entanto, se divulgou que os principais líderes das maras foram transferidos a outras prisões com melhores condições, em troca de uma diminuição da violência. A despeito da discrepância inicial entre os militares, que eram os que conduziam a negociação, e a Polícia sobre se os líderes presos realmente conseguiriam entregar o prometido, os homicídios se reduziram bruscamente a um terço do nível anterior e as maras deram de “presente” ao presidente um dia sem homicídios no país, com motivo da intervenção desse último no foro da OEA em Cartagena de Índias. O governo negou que estivesse negociando com as maras e apresentou o cenário como um acordo entre as próprias maras que o governo simplesmente facilitou, um relato em que ninguém acreditou. Um dos paradoxos desse cenário é que o governo precisava fortalecer a estrutura interna das maras, e facilitar a comunicação entre seus membros, para que as ordens dos líderes tivessem efeito. A OEA, oferecendo cobertura política, e a União Europeia, com financiamento, também alavancaram o processo. Mas se os homicídios certamente caíram, as extorsões continuaram na medida em que não havia alternativa de geração de renda para os membros das maras. A percepção da opinião pública sobre os privilégios dos presos unida à continuidade das extorsões, a falta de transparência do processo e de apoio da oposição, acabaram com a experiência e os homicídios voltaram a subir até ultrapassar os 100 por 100.000, colocando o país no pódio da violência letal no mundo. A partir daí, as maras aprenderam a utilizar os homicídios como uma mercadoria a ser negociada com o governo.

O governo atual, do presidente Bukele, continuou a prática de negociar com os líderes das maras, ao tempo que negava essa realidade e usava publicamente uma retórica de dureza contra elas, como mostrou a investigação do jornal El Faro e confirmaram documentos apresentados pelo Departamento de Justiça e pela Procuradoria dos EUA.

Mas de repente, em só três dias, entre 25 e 27 de março de 2022, aconteceram 87 homicídios que comoveram o país. O governo respondeu decretando o estado de exceção e outorgando amplos poderes à polícia para prender qualquer suspeito e mantê-lo preso sem cargos e sem intervenção de um juiz. Calcula-se que desde então mais de 60.000 pessoas foram capturadas. Trata-se do reverso perverso da prevenção secundária, o que poderíamos chamar sinistramente de repressão secundária. Ao invés de investir em programas de prevenção para pessoas em risco de participarem em atos delitivos, prende-se a todos os que entram no perfil de possíveis ou futuros integrantes de grupos criminosos: jovens pobres que apresentem tatuagens ou comportamento “suspeito”. Assim, a custo de encarcerar muitos inocentes, o governo garante que muitos membros das gangues serão também presos e, mais importante, que os que ainda estão livres não poderão operar nas ruas. O árduo trabalho de investigação para obter provas é substituído pelo encarceramento expresso e maciço do grupo de risco na sua totalidade.

Observe-se que isto não significa necessariamente que o governo não tenha continuado a negociar com os líderes em prisão, possibilidade esta que se desconhece, mas que tem despertado a desconfiança entre os próprios membros das maras no sentido de que os líderes poderiam estar procurando benefícios individuais e deixando de lado o bem da organização.

O resultado das medidas extraordinárias tem sido uma diminuição da violência fora das cadeias, uma quebra das redes de extorsão das gangues e uma melhora significativa da percepção de segurança na cidadania, que aprova majoritariamente a medida. Depois de muitos anos, muitas pessoas, embora nem todas, deixaram de pagar extorsão e passou a ser possível entrar em territórios antes controlados por grupos armados. Do outro lado, ficam os grupos de direitos humanos e os familiares daqueles encarcerados injustamente em megaprisões apresentadas ao mundo com grande estardalhaço. Fica também ferido de morte o próprio estado de direito, num cenário ainda mais preocupante, na medida em que o governo Bukele acabou com a independência da Justiça, demitindo os juízes da Corte Suprema e nomeando outros afins, e persegue os críticos e a sociedade civil independente. Os partidos da oposição no país se encontram entre a espada e a parede, não sabendo bem como se posicionar perante medidas extremas que são apoiadas pela população, mas desenvolvidas por um governo autoritário que já mostrou a disposição para usar o aparato de justiça criminal seletivamente contra seus inimigos políticos (lawfare na sua máxima expressão).

No passado, todas as intervenções autoritárias e ilegais contra as maras acabaram por fortalecê-las. Agora, a incógnita é quanto tempo o governo poderá manter essas pessoas presas sem julgamento e o que acontecerá quando elas saírem, se é que saem algum dia. O custo econômico e social desse ‘estado prisional’ é gigantesco, mas por enquanto a maioria dos cidadãos está disposto a pagá-lo.

Num prazo mais longo, a segunda grande interrogação é que, mesmo se o governo conseguir manter essas pessoas na cadeia durante muito tempo, as novas coortes de jovens que estão chegando precisarão de alternativas sociais e econômicas dignas, sem as quais o risco de envolvimento em atividades criminais e violentas retornará, mesmo que seja com novas estruturas.

O resto do continente contém a respiração perante essa fantasia realizada do populismo penal indiscriminado. Em outros países da região, diversas vozes já estão reclamando a aplicação do modelo salvadorenho. A democracia, a presunção de inocência e o estado de direito estão sob ameaça. Quem escreveu sobre o “fim da história” no fim do século XX nem imaginava as fortes emoções que o século XXI estava preparando.

 

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