O cardápio de praxe: “Cidade Integrada” ao molho de dèjá-vu
É preciso pactuar com o governo e o parlamento local regras de transição que possibilitem uma integração factível da favela com o restante da cidade formal, se esse é realmente o objetivo do “novo plano” do governo estadual
Robson Rodrigues da Silva
Antropólogo, membro do Laboratório de Análise da Violência da UERJ
Logo após a ocupação policial da favela do Jacarezinho ocorrida na última semana, o governo do estado do Rio de Janeiro anunciou seu “novo” plano de segurança pública para as favelas do estado, batizado de “Cidade Integrada”. Apesar do esforço discursivo do governador Claudio Castro, aquela ação inicial não sinaliza uma “novidade”, mas parecia repetir um velho e conhecido script. O próprio governador veio a público tentar explicar o seu programa, prometendo que aquela seria uma intervenção diferente das anteriores, porque a prioridade seriam as ações de cunho social. No início de seu pronunciamento, Castro deu a entender que se referia à recente ação da polícia naquela comunidade, marcada pela violência, mas logo apontou com clareza o seu alvo: as Unidades de Polícia Pacificadora – UPP, carro-chefe da política de segurança pública do ex-governador Sérgio Cabral. Só não foi tão claro em estabelecer essa diferença.
Infelizmente, é praxe, no campo político, um governo negar, acabar ou mesmo destruir iniciativas de governos anteriores. A política de segurança pública de Sérgio Cabral e Luiz Fernando Pezão, conduzida pelo então secretário José Mariano Beltrame, também apagou de seus discursos iniciativas anteriores que, tais como a de Castro, já prometiam articular políticas sociais com a atuação de uma “nova polícia”, o que, de fato, nem a UPP nunca entregou. No entanto, o clima de dèjá-vu e a pouca clareza de Castro sobre o seu plano, que soa como arremedo de uma UPP fracassada, suscitaram várias críticas, de policiais e especialistas.
A atual iniciativa do governo, batizada “Cidade Integrada”, foi recebida com ressalvas expressas por moradores locais e, de forma mais discreta, por policiais que participaram diretamente da UPP. Incluem-se ainda nesse rol a mídia, especialistas e outros setores da sociedade civil, sobretudo os que, de alguma forma, acreditaram nas promessas da política de pacificação, mas acabaram frustrados ao longo do seu processo marcado pela sua expansão acelerada e pela ausência das ações sociais inicialmente previstas no programa.
Uma política pública, segundo a acepção formal do termo, é a arte de gerir o que Cícero, grande jurista e orador romano, já definia como a res publica, a coisa pública, não no sentido das relações jurídicas, mas no de se estabelecer o sentido comunitário, sob um pacto político. Nesse sentido, a Administração Pública brasileira está primeiramente condicionada aos princípios da legalidade, moralidade, publicidade e eficiência, estabelecidos em nossa constituição política e, portanto, a lógica do sigilo usada para justificar a atividade policial nunca poderia justificar a ação política, como deu a entender Castro.
Além disso, os objetivos e os recursos públicos a serem utilizados pelo “novo” programa, assim como os indicadores para o seu monitoramento e a sua avaliação, não foram claramente colocados. As práticas indicam uma política vertical que já cai pronta no colo dos moradores com um quê de despotismo esclarecido, reforçando a histórica relação de assimetria entre o Estado e a população dessas comunidades pobres. Numa cronologia invertida, na qual a política é apresentada primeiro para, depois, ouvir os principais implicados, esses tropeços iniciais sugerem, na melhor das hipóteses, improviso e, na pior, hipocrisia, pois, além de subverterem a lógica de uma política que, no discurso, balbucia o conceito amplo da segurança cidadã, emulam erros de iniciativas anteriores negadas pelo próprio discurso oficial do governo.
O voluntarismo de Castro deixou patente a carência de diagnóstico acerca da complexidade do problema. Não se lançou mão do acúmulo de conhecimento crítico-reflexivo sobre os erros e acertos da pacificação; parece que sequer foram ouvidos atores fundamentais no processo, como moradores e policiais, que atuaram na ponta da linha. É compreensível que estes, hoje, e com toda razão, estejam desconfiados como “gatos escaldados” diante das explicações incertas e justificativas contraditórias do governo. Essa falta de clareza acaba criando uma atmosfera de intranquilidade e desconfiança, completamente oposta ao que, em tese, se espera de uma política pública de segurança.
Por mais que se dê o benefício da dúvida ao governador Cláudio Castro, essa sua postura acaba robustecendo a hipótese de que o motor não declarado por trás dessa iniciativa seja mesmo um antecipado clima de campanha eleitoral. Apesar do seu esforço de voltar atrás em sua postura inicial, quando procurou se reunir com os moradores locais, bem como com o Prefeito Eduardo Paes, alegando que não poderia apresentar um plano definido a priori, já que só pretende passar a uma próxima comunidade quando as ações sociais no Jacarezinho já estiverem consolidadas, o que não deixa de ser positivo quando comparado ao expansionismo irresponsável do programa UPP, aspectos importantes do seu plano ainda não foram esclarecidos. Dentre eles, aponto um: é preciso pactuar com o governo e o parlamento local regras de transição que possibilitem uma integração factível da favela com o restante da cidade formal, se esse é realmente o objetivo do “novo plano” do governo estadual.