Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2023 20/09/2023

O aumento da violência contra crianças e adolescentes no Brasil em 2022

O crescimento significativo dos casos de estupro, maus-tratos, abandono de incapaz e lesão corporal em contexto de violência doméstica demonstra o ambiente hostil que o Brasil ainda é para as crianças

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Sofia Reinach*

Pesquisadora associada do FBSP e Gerente sênior de programas de prevenção e enfrentamento a violências da Vital Strategies Brazil

Betina Warmling Barros

Doutoranda em Sociologia na Universidade de São Paulo e pesquisadora no Fórum Brasileiro de Segurança Pública

Dificilmente teríamos como apresentar um cenário pior em relação à violência contra crianças e adolescentes do que o que se desenhou para o ano de 2022. Diferentes formas de violência contra quem possui entre 0 e 17 anos cresceram no último ano. Os números são impressionantemente altos e, como previsto nos últimos Anuários, já extrapolam as estatísticas anteriores à pandemia de COVID-19. Vale lembrar que acidentes e violências, segundo a OMS, representam o maior problema de saúde pública entre crianças e adolescentes em países em desenvolvimento[1] e podem atingir, segundo estimativas, até 1 bilhão de vítimas anualmente em todo o mundo, considerando casos de violência física, sexual, emocional e negligência contra quem tem entre 2 e 17 anos[2].

O quadro a seguir sintetiza os índices coletados pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública para o ano de 2022, dando continuidade à produção de dados sobre os registros dos crimes de abandono de incapaz, abandono material, maus-tratos, lesão corporal no contexto de violência doméstica, pornografia infanto-juvenil, exploração sexual infantil, estupro e mortes violentas intencionais. Analisar tais registros documentados nas delegacias de todo o país em quatro grupos etários auxilia no diagnóstico em termos de quem são as vítimas prioritárias para cada tipo de violência.

 

Violência sexual, física e negligência

O estupro é o tipo de crime com maior número de registros contra crianças e adolescentes do Brasil. Em 2022 foram quase 41 mil vítimas de 0 a 13 anos, das quais quase 7 mil tinham entre 0 e 4 anos, mais de 11 mil, entre 5 e 9 anos, mais de 22 mil entre 10 e 13 anos e mais de 11 mil entre 14 e 17 anos[1]. Dentre as vítimas do sexo feminino, existe um pico de casos entre 3 e 4 anos de idade e, a partir dos 9 anos, o número de casos aumenta e alcança o seu maior valor com vítimas de 13 anos. Dentre as vítimas do sexo masculino, apesar de se tratar de menor quantidade de casos, o pico se dá aos 4 anos de idade.

No caso da violência física contra crianças e adolescentes, esse é majoritariamente um fenômeno de violência intrafamiliar. Como tal, também possui alto nível de reincidência, sendo caracterizada como uma experiência de longa duração na vida da vítima[2]. Dificuldades escolares, ansiedade, reprodução da violência e sequelas provenientes das lesões são algumas das consequências já mapeadas pela literatura especializada[3] e dão conta da gravidade desses atos, apesar de muitas vezes ainda serem concebidos por muitos como instrumentos educacionais válidos e legítimos.

Os crimes de maus-tratos (art. 136 do Código Penal e art. 232 do ECA) possuem números significativos de registros com vítimas de 0 a 17 anos. Em 2022 foram documentados 22.527 casos nessa faixa etária, o que significa um aumento de 13,8% em relação a 2021 e uma taxa de 45,1 registros por 100 mil habitantes dessa idade. Além disso, nota-se que o aumento ocorreu em todas as faixas etárias, porém proporcionalmente maior nas faixas de 10 a 13 e 14 a 17 anos.

Outra modalidade frequente de violência contra crianças e adolescentes é a negligência, que se caracteriza pela omissão por parte dos pais e da sociedade em proverem as necessidades de uma criança, incluindo questões financeiras, mas também emocionais. Vale destacar que a desigualdade social e as questões decorrentes das carências socioeconômicas que estão fora do controle dos pais não necessariamente significam casos de negligência. É sobretudo a prática abusiva e a omissão consciente que importam na análise da violência parental.

Nos casos mais graves, situações de negligências podem significar a criminalização dos autores da violência pelos crimes de abandono de incapaz ou abando material. Nesse segundo caso, o cerne da negligência é financeiro e se materializa, por exemplo, na falta de pagamento de pensão alimentícia. O crime se manteve estável entre 2021 e 2022, em que pese se note uma baixíssima incidência dos registros desse tipo penal no Brasil. Em ambos os períodos foram registrados pouco mais de 800 casos por ano em todo o país. Estados como Pernambuco e Espírito Santo não tiveram nenhum registro de abandono material e Acre, Alagoas, Ceará, Pará, Paraíba, Rondônia e Roraima registraram menos de 10 casos anuais.

O crime de abandono de incapaz, por sua vez, possui capitulação mais ampla, criminalizando todo o tipo de abandono de quem esteja sob cuidado do autor e que seja incapaz de defender-se dos riscos resultantes no abandono. Assim, quando há a responsabilização criminal, a vítima já sofreu as consequências da negligência sofrida. De 2020 para 2021, já havíamos notado o aumento de 11,1% dos registros do crime, o que se aprofundou no último ano, com um novo crescimento de 14% no volume de registros de abandono de incapaz no país.

As Mortes Violentas Intencionais entre os mais jovens

Ano após ano, infelizmente, os dados confirmam que o Brasil vive um cenário dramático da violência letal entre adolescentes e jovens. A boa notícia é que, em 2022, o número de mortes violentas intencionais no geral caiu no país em relação ao ano anterior. Entre as vítimas de 0 a 17 anos não foi diferente, com uma diminuição de 2,6% dos números absolutos. No entanto, o número de assassinatos de crianças e adolescentes segue sendo um problema grave, somando quase 2.489 mortes no ano, mantendo um patamar de quase sete casos por dia.

A maior parte dos crimes letais contra crianças e adolescentes foi de homicídio doloso. No entanto, chama a atenção a proporção de feminicídios entre as vítimas de 0 a 11 anos. Enquanto a fração de feminicídios com vítimas de 12 a 17 anos significa 2,2% do total de mortes violentas, na faixa de 0 a 11 anos esse percentual é de 11,4% (totalizando 24 casos).  Dentre as vítimas de 12 a 17, por outro lado, destaca-se a quantidade de mortes decorrentes de intervenção policial: foram 358 vítimas em 2022, enquanto em 2021 haviam sido registrados 306 casos. Ou seja, houve um aumento de 17% de um ano para o outro, razão pela qual, em 2022, as mortes por policiais foram responsáveis por 15,7% do total de crimes letais entre adolescentes.

O perfil das vítimas das mortes violentas intencionais sofre uma alteração significativa a depender do perfil etário. Dentre as vítimas de 0 a 11 anos, 45,9% são do sexo feminino e 54,1% do sexo masculino, enquanto dentre as vítimas de 12 a 17 anos, 89,7% das vítimas são do sexo masculino e apenas 10,3%, do sexo feminino. O gênero como um fator de risco para os meninos, portanto, só se impõe entre os adolescentes, quando as mortes ocorrem prioritariamente como consequência da violência urbana. Nos casos de violência letal entre as crianças – decorrentes sobretudo da violência doméstica e intrafamiliar – as vítimas são distribuídas sem discrepâncias tão evidentes entre meninos e meninas, embora a porção maior das vítimas esteja entre crianças do sexo feminino.

O perfil racial também sofre drástica alteração a depender da faixa etária. Enquanto 67,1% das vítimas de 0 a 11 anos são negras, esse percentual sobe para 85,1% na faixa etária de 12 a 17 anos, evidenciando que a desigualdade racial é parte estruturante da problemática das mortes violentas no país e que se acentua na medida em que os anos passam na vida do sujeito. Assim como foi possível observar entre as vítimas de maus-tratos, também nos crimes letais o racismo vai se consolidando como fator que atua no incremento do risco de se tornar vítima de violência na medida em que as crianças vão ficando mais velhas. Entre os adolescentes, a distinção é absolutamente evidente e implica que 8 em cada 10 mortes violentas de adolescentes vitimem negros no país.

Garantir o futuro protegendo as crianças e adolescentes no presente

Os dados aqui apresentados deixam evidente que a violência atinge crianças e adolescentes das mais diferentes formas. Enquanto o estupro no Brasil é um crime essencialmente cometido contra crianças e meninas, já que mais de 60% das vítimas possuem menos de 14 anos e mais 80% são do sexo feminino, as mortes violentas atingem principalmente adolescentes do sexo masculino. Outra forma comum de violência contra crianças é a negligência e o abandono. Esse tipo de violência está fortemente relacionado a diferentes formas de vulnerabilidade social, como pobreza e abuso de entorpecentes, por exemplo. A pornografia infanto-juvenil e a exploração sexual infantil possuem uma lógica mercadológica relacionada à vulnerabilidade social. Maus-tratos é uma forma de violência, majoritariamente doméstica e intrafamiliar, que pode ser tanto uma prática corriqueiramente violenta, como uma conduta equivocada proveniente das dificuldades da parentalidade.

Em todos esses casos, entendemos que a estatística aqui apresentada representa apenas os casos mais graves dessas modalidades criminais, ou seja, são apenas a fração de fatos que chegam à polícia. No caso da violência física ocorrida no ambiente doméstico, por exemplo, a literatura é consensual no sentido de que apenas os casos mais graves são notificados[4], seja pelos equipamentos de saúde ou nas delegacias de polícia.

Cada um desses tipos de violência tem especificidades que precisam ser compreendidas para que as políticas públicas para prevenção a serem adotadas sejam adequadas às características do crime. Assim, é fundamental que saibamos onde as violências ocorrem, quem são os perpetradores, quais as características das vítimas etc. para que as estratégias desenhadas foquem nos locais certos e tenham como alvo os públicos mais afetados por cada tipo de violência.

Apesar de ser clara a necessidade de estatísticas detalhadas, para alguns tipos de violência que acometem crianças no Brasil, os dados seguem sendo frágeis. O Fórum Brasileiro de Segurança Pública levanta dados sobre maus-tratos, abandono de incapaz, abandono material, pornografia infanto-juvenil e exploração sexual infantil há apenas dois anos, razão pela qual ainda não é possível ter uma longa série histórica desses tipos penais. No entanto, o que mais chama a atenção é como o registro de parte desses crimes ainda é residual nas delegacias brasileiras, seja porque a sociedade naturaliza a violência contra os mais jovens e se exime de denunciar quando presencia alguns desses fatos, seja porque as polícias ainda não possuem equipamentos próprios para a investigação e combate a este tipo de criminalidade.

Como dito no início desse texto, o ano de 2022 foi um ano ainda mais violento para crianças e adolescentes brasileiras. Apesar de as mortes violentas terem apresentado uma sutil redução, todos os outros crimes apresentaram aumento de casos no último ano. O aumento significativo dos estupros, maus-tratos, abandono de incapaz e lesão corporal em contexto de violência doméstica demonstra o ambiente hostil que o Brasil ainda é para as crianças. Uma violência na infância é uma marca que afetará toda a vida do sujeito, podendo implicar na reprodução violenta, no afastamento familiar, na vivência em meio à ansiedade e depressão, dentro muitas outras consequências possíveis.

Da mesma forma como Estado e sociedade têm se unido em prol de uma luta contra a violência contra as mulheres – implicando o aumento de mecanismos de proteção, o aprofundamento de pesquisas e de debate público sobre o tema – também a violência contra as crianças e os adolescentes precisa ser eleita como fenômeno a ser combatido por todos. Não é mais justificável bater, castigar ou punir para educar. É urgente que as estratégias de enfrentamento dessas violências sejam ampliadas e aprofundadas no Brasil, assim como define o artigo 227 da Constituição: as crianças devem ser prioridade absoluta.

* Este texto foi originalmente publicado na 17ª edição do Anuário Brasileiro de Segurança Pública. A íntegra do documento pode ser acessada em https://forumseguranca.org.br/anuario-brasileiro-seguranca-publica/

[1] ROMEIRO, Juliana et al. Violência física e fatores associados em participantes da Pesquisa Nacional de Saúde do Escolar (PeNSE). Ciência & Saúde Coletiva, v. 26, n. 2, 2021.

[2] HILLIS, Susan et al. Global prevalence of past-year violence against children: a systematic review and minimum estimates. Pediatrics, v. 137, n. 3, 2016.

[3] O estado do Pernambuco informou a idade das vítimas por faixas etárias de 0 a 11 anos e 12 a 17 anos. Por isso, os dados do estado não estão incluídos em desagregações por idade simples ou faixa etária e apenas nas análises com vítimas de 0 a 17 anos.

[4] World Health Organization. INSPIRE: Seven strategies for Ending Violence Against Children. Geneva: World Health Organization; 2016.

[5] AZEVEDO, M.; GUERRA, V. Mania de bater: A punição corporal doméstica de crianças e adolescentes no Brasil. São Paulo: Iglu; 2001.

[6] RIBA, Aline C.; ZIONI, Fabiola. O corpo da criança como receptáculo da violência física: análise dos dados epidemiológicos do Viva/Sinan. Saúde debate, v. 46, n. 5, 2022.

 

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