O ARTIGO 142 DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL: DEMOCRACIA E INTERVENÇÃO MILITAR (2)
Para evitar que grupos civis ou estamentos militares se vejam acossados ou interessados em aventuras golpistas, é candente a mudança desse artigo. A Carta Magna não pode atentar contra si própria
Glauco Silva de Carvalho
Bacharel em Direito (USP), mestre e doutor em Ciência Política (USP). Coronel da reserva da PMESP, foi diretor de Polícia Comunitária e Direitos Humanos e Comandante do Policiamento na Cidade de São Paulo
No último artigo, falamos um pouco sobre o artigo 142 da Constituição Federal e mais, o que não era o cerne da questão, sobre questões republicanas. Ao fim e ao cabo, estamos tratando de república, um dos pontos-chave de nossos debates neste espaço, pelo qual agradeço ao Fórum Brasileiro de Segurança Pública devido à oportunidade e liberdade de expressão.
Pois bem, em breve teremos o retorno à normalidade das condições democráticas do país. Em que pese o clima de revanchismo, ódio, raiva, desprezo, antagonismo e destruição que existe atualmente, algumas questões deverão ser enfrentadas. E não serão fáceis.
Uma delas é a questão dos papeis e funções atribuídos às Forças Armadas e às Polícias, que estão previstas entre os artigos 142 e 144 da Constituição Federal. Assim estabelece o texto da Carta Magna a respeito dessas Instituições:
Art. 142. As Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República, e destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem. (grifos nossos)
- 1º Lei complementar estabelecerá as normas gerais a serem adotadas na organização, no preparo e no emprego das Forças Armadas.
- 2º Não caberá habeas corpus em relação a punições disciplinares militares.
[…]
II – o militar em atividade que tomar posse em cargo ou emprego público civil permanente, ressalvada a hipótese prevista no art. 37, inciso XVI, alínea “c”, será transferido para a reserva, nos termos da lei;
[…]
CAPÍTULO III
DA SEGURANÇA PÚBLICA
Art. 144. A segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, é exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, através dos seguintes órgãos:
I – polícia federal;
II – polícia rodoviária federal;
III – polícia ferroviária federal;
IV – polícias civis;
V – polícias militares e corpos de bombeiros militares.
VI – polícias penais federal, estaduais e distrital.
- 5º Às polícias militares cabem a polícia ostensiva e a preservação da ordem pública; aos corpos de bombeiros militares, além das atribuições definidas em lei, incumbe a execução de atividades de defesa civil.
- 5º-A. Às polícias penais, vinculadas ao órgão administrador do sistema penal da unidade federativa a que pertencem, cabe a segurança dos estabelecimentos penais.
- 6º As polícias militares e os corpos de bombeiros militares, forças auxiliares e reserva do Exército, subordinam-se, juntamente com as polícias civis e as polícias penais estaduais e distrital, aos Governadores dos Estados, do Distrito Federal e dos Territórios.
- 7º A lei disciplinará a organização e o funcionamento dos órgãos responsáveis pela segurança pública, de maneira a garantir a eficiência de suas atividades.
Em primeiro lugar, há que se ressaltar a idiossincrasia do artigo 142, caput, ao atribuir, realmente, às Forças Armadas, um quase-papel de Poder Moderador. O que se depreende desse artigo é que as Forças Armadas se prestam a três funções: (i) a defesa da Pátria, (ii) a garantia dos poderes constitucionais, e (iii) a garantia da lei e da ordem.
Convém ressaltar o momento em que se escrevia a atual Constituição Federal. Estávamos em meados dos anos 80, em pleno fim da guerra fria, e o Brasil, na transição do regime militar de 64 para a democracia plena, que ocorreria poucos anos depois (1991), com a assunção de Fernando Collor de Mello. O clima de revanchismo e ódio daquele período, para que os mais jovens possam ter ideia, se assemelha muito ao que vislumbramos atualmente.
Há dois pontos que me mobilizaram nesta empreitada contra Bolsonaro (ao lado de tantos outros milhões). Em primeiro lugar, o apreço pela democracia liberal como a única alternativa, no mundo contemporâneo, que trouxe tranquilidade, possibilidade de desenvolvimento socioeconômico e liberdade aos povos. Ainda não se inventou ou criou nada além disto. O segundo ponto é que vivi de forma muito intensa essa transição dos anos 80. E ela é sofrida, angustiante e conflituosa. Já tratei desse tema aqui, em outras oportunidades.
Prontidões, greves, agressões mútuas, opressão, dúvida, angústia, tristeza, decepção. E tenho plena convicção que, caso realmente as Forças Armadas tivessem tomado o poder agora, teríamos, além de sofrimento no momento presente, outro parto anos mais tarde, quando do retorno ao regime democrático.
Hoje, mais do que nunca, tenho convicção absoluta de que não houve um golpe por conta de as Forças Armadas, especialmente o Exército, não terem dado aval a tal empreitada. Temos 50% de um lado e 50% do outro lado. Temos, como tive oportunidade de verificar, ao viajar a trabalho pelo interior, dezenas ou centenas de manifestações defronte a quarteis, comandos ou tiros de guerra. É um barril de pólvora. Numa situação dessas, de rivalidade absoluta, o poder armado, caso pendesse para o lado bolsonarista, teria não esses 50%, mas algo próximo disso a ter-lhe dado sustentação. Minha esposa, que acaba de voltar da missa (escrevo a coluna no domingo dia 3), onde encontrou amigos nossos, foi questionada quando eu achava que as FA entrariam em ação pelo “bem do país”. Meu WhatsApp está apinhado de perguntas nesse sentido.
Para não correr esse risco, é salutar e saudável que os artigos 142 e 144 sejam alterados. Deve-se retirar a parte final do artigo 142, qual seja, que as FA se prestam à garantia dos poderes constitucionais e, quando chamada, à garantia da lei e da ordem. Esse é o grande mote que leva algumas milhares de pessoas a permanecerem defronte aos quarteis solicitando uma intervenção militar. Isso é um rastilho de pólvora. Eu, que não vivi 1964, talvez tenha uma ideia do que fora aquele período por conta do que vivemos agora. Não podemos dar como narrativa, a um grupo de incautos, a justificativa de intervenção militar com supedâneo na própria Constituição. E esse desiderato encontra apoiadores e profissionais a justificar-lhe a posição, de juristas (Ives Gandra da Silva Martins) a operadores do Direito (desembargadores e promotores). Esquecem-se de que a norma jurídica, como ensinam notáveis professores, deve ser interpretada de forma holística, integral, e não pela letra exclusiva de determinado ponto.
Por derradeiro, as Polícias Militares não podem mais ser as “forças auxiliares e reservas do Exército”. Não por outra razão, a família Bolsonaro tentou, a qualquer custo, passar as Polícias Militares à subordinação do governo central. Têm elas a investidura militar, porquanto são razoavelmente disciplinadas; possuem efetivo profissional que ultrapassa os 500 mil policiais militares; são o cerne do sistema de segurança pública do país; são profissionalizadas, pois seus quadros são concursados e têm uma longa trajetória de carreira; estão acostumadas ao confronto diário, do dia a dia; portanto, o conflito não assusta os integrantes dessa carreira.
Assim, para evitar que grupos civis ou estamentos militares se vejam acossados ou interessados em aventuras golpistas, é candente a mudança desses artigos. A Constituição não pode atentar contra si própria. O país já goza de maturidade suficiente para isso. A democracia é barulhenta e conflituosa. Mas ela possui instrumentos, ou deve criá-los, ou deve operacionalizá-los, para que possa solucionar os conflitos que dela advém, ou que sejam dela decorrentes. Para isso existe a Política. E se a Política se corrompeu (no sentido originário do termo), só mais democracia para corrigir seus desvios.
Não há nada fora da democracia que possa superar seus obstáculos e empecilhos.