Glauco Silva de Carvalho
Bacharel em Direito (USP), mestre e doutor em Ciência Política (USP). Coronel da reserva da PMESP, foi diretor de Polícia Comunitária e Direitos Humanos e Comandante do Policiamento na Cidade de São Paulo
Aos poucos vamos retornando ao “rame-rame” de sempre. A ausência sanitária e bem-vinda do atual presidente nos brinda com as questões que são realmente importantes da democracia brasileira. Voltamos, paulatinamente, ao debate de assuntos controversos que fazem qualquer democracia ser uma democracia, desde que não tenhamos a faca, ou, melhor dizendo, o fuzil no pescoço.
Discutir o papel das Forças Armadas numa democracia, bem como da estrutura de segurança pública (as polícias) faz parte dos assuntos mais relevantes dentro de uma república.
E, por falar em república, antes de adentrar o cerne do artigo, gostaria apenas de mencionar as “caronas” que os “amigos” do futuro presidente Lula andam lhe dando. Estou falando de uma “carona” ou de um “empréstimo de aeronave” (ninguém sabe ao certo, tanta mentira que enreda essa história), para que o futuro presidente Lula fosse para a COP. É de deixar estarrecido, senão estupefato, qualquer um que nutra um mínimo de decência ou de apreço por princípios republicanos. Mas é bom ter democracia plena para discutir fatos que nos assolam há pelo menos 500 anos e que Victor Nunes Leal tão bem descreveu em meados do século 20 (Coronelismo, enxada e voto). Portanto, nada de novo no fronte.
Uspianos, unespianos e unicampianos apressaram-se em arranjar desculpas esfarrapadas para “justificar” o ocorrido. As duas principais explicações inescrupulosas são: ele ainda (i) não está no exercício do mandato e, além do mais, (ii) precisa de segurança.
Gostariam que se questionasse quem é o ex-proprietário da Qualicorp, José Seripieri Filho. Mais, poderiam pedir a ele que tirasse o caráter sigiloso de seu processo, essa excrescência do direito pátrio, que só vi, em meus 40 anos de vida pública, servir aos interesses das classes mais privilegiadas. Não me recordo de ter visto tal princípio para o preto, o pobre, o marginalizado ou o policial. Também não me recordo de ter visto qualquer partido político, do Novo ao Partido dos Trabalhadores, questionar a constitucionalidade do “segredo de justiça” junto ao STF, vez que estamos falando, na maior parte das vezes, de “white collar crimes” que envolvem dinheiro que pertence ao povo brasileiro.
Também deviam questionar as profundas ligações do Dr. Seripieri com tucanos de alta plumagem nos últimos doze anos, pelo menos, que eu sei. Poderiam pedir, via Lei de Acesso, quais e quantas visitas esse cidadão fez ao Palácio dos Bandeirantes.
Interessante como as pessoas que detêm o capital fazem amizades rápidas com políticos de grande expressão, regional ou nacional. Não à toa, brindam-lhes com apartamentos e chácaras. Deixam-me boquiaberto presidentes de empresas (empreiteiras) multinacionais preocuparem-se com detalhes de reformas de empreendimentos que estão muito distantes — e aquém — das preocupações de um executivo de alta envergadura de empresa que faz alguns bilhões ao ano. Isto nos mostra que, a par dos exageros e ilegalidades da Lava-Jato, ela talvez não estivesse de todo equivocada. Mas isso é o Brasil: o juiz vira ministro, briga como padrinho, se afasta dele, o critica ferozmente, sai candidato ao Senado, pede apoio a quem o demitiu, que prontamente o atende, e volta à política. Como há pessoas que conspurcam com a idoneidade e a seriedade do poder que tem por incumbência dar a última palavra em regimes democráticos. Sujam sua toga sem o menor constrangimento.
Voltemos ao problema. Como dizem os ingleses, “there is no free lunch” (não há almoço grátis). Em primeiro lugar, pouco importa se está ou não no exercício do cargo. Até reconheço e entendo que um futuro chefe de Estado tenha o direito de se deslocar em aeronave particular. Mas o Partido dos Trabalhadores, com o cofre cheio, devia bancar tais despesas, cujo valor não deve ultrapassar os R$ 200 mil reais, para uma viagem dessa envergadura.
Em segundo lugar, Lula sempre desdenhou da segurança. Isso é praxe no Brasil! Não é novidade para ninguém.
Voltemos, então, ao que nos propusemos a falar.
O poder público no Brasil, digo o estamento parlamentar eleito, precisa se debruçar sobre toda a estrutura de segurança nacional e pública do país.
Passou da hora.
Não cabe, em democracias consolidadas, a menor hipótese de intervenção de Forças Armadas em solo interno. É incompatível com qualquer preceito democrático e republicano.
Essa mera hipótese pode causar “coceira” naqueles que a veem como uma justificativa para servir de “poder moderador” das disputas internas ou de “fiador” da democracia. Os artigos 142 a 144 vão precisar ser enfrentados e debatidos pelo próximo Congresso eleito. Definir os papéis de cada uma das Forças Armadas, tornar inconstitucional sua atuação no âmbito interno do país, em qualquer hipótese, e rever o papel e a estrutura de cada uma das polícias são desafios urgentes.
Como o espaço não me permite, volto ao assunto no próximo artigo.