Múltiplas Vozes 23/11/2022

O apagamento racial nas estatísticas criminais

A identificação racial não é entendida como elemento que compõe a identidade e dignidade dos sujeitos no âmbito do sistema de justiça, uma vez que o dado racial também é obtido a partir do registro que o policial faz, sem maiores questionamentos ao longo do processamento

Compartilhe

Daniely Roberta dos Reis Fleury

Diretora de políticas de Ações Afirmativas na Pró-reitoria de Assuntos Estudantis na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Pesquisadora do Centro de Estudos de Criminalidade e Segurança Pública (CRISP/UFMG)

Ludmila Ribeiro

Professora associada no Departamento de Sociologia e pesquisadora no Centro de Estudos de Criminalidade e Segurança Pública (CRISP), ambos na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

Valéria Cristina Oliveira

Professora adjunta do Departamento de Ciências Aplicadas à Educação (DECAE), na Faculdade de Educação (FaE) da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), e pesquisadora do Centro de Estudos de Criminalidade e Segurança Pública (CRISP) e do Núcleo de Pesquisas em Desigualdades Escolares (NUPEDE)

Estamos diante de um cenário em que a ampliação e o aprofundamento de estudos que mobilizam as dimensões raciais encontram empecilhos nas próprias burocracias, pois elas não coletam informações raciais ou o fazem a partir de métodos pouco compatíveis com os utilizados nas pesquisas populacionais (como o Censo). Essa situação propicia a invisibilidade da temática, a reificação de assimetrias raciais e a perpetuação do racismo. Afinal, análises mais consistentes e racializadas dos fenômenos ficam comprometidas e, por consequência, também a formulação de indicadores adequados para subsidiar políticas públicas.

Argumentamos que as áreas de segurança pública e justiça criminal (re)produzem um processo de apagamento racial em suas estatísticas. Ainda hoje, pouco sabemos sobre como o dado racial é registrado nos boletins de ocorrência das organizações policiais, que são nossas principais fontes de coleta da informação racial.

Historicamente, observamos a invisibilização e a falta de consistência em torno da maneira como a informação sobre raça/cor é produzida. Dentro do sistema de segurança pública e justiça criminal, as poucas informações disponíveis são produto da maneira como o burocrata da linha de frente, na maior parte das vezes o policial, registra a percepção sobre a raça/cor da pessoa abordada ou indiciada, de acordo com suas próprias representações sobre quem é branco, preto, pardo, amarelo ou indígena.

A principal categorização racial dos acusados acontece pelas mãos das polícias (militares ou civis), quando os policiais redigem o boletim ou registro de ocorrência. Esse documento é produzido pelo agente que fez o flagrante do delito ou ficou responsável por registrar o crime, comunicado pela vítima ou por uma testemunha. Nesse caso, o policial identifica e registra a raça de determinada pessoa, independentemente de como ela se autodeclara. É uma categorização fundada na percepção social das marcas inscritas no corpo do sujeito (fenótipo), que influencia como as pessoas são tratadas, sendo a base da discriminação racial. Essa identificação informal e cotidiana é a que pode fazer acender a sirene da viatura de polícia diante de um jovem negro com perfil de “elemento suspeito” ou até permitir que um indivíduo na mesma situação passe despercebido em razão da “imunidade de sua cor”.

Logo, a maneira como os dados sobre a “raça” dos acusados são tratados  no sistema de segurança pública e justiça criminal aponta para três questões fundamentais que estão relacionadas ao racismo institucional. Primeiro, há uma enorme dificuldade em se perguntar a raça/cor à pessoa que foi presa, como se isso por si só pudesse iniciar um debate sobre o racismo, o que desestruturaria por completo o sistema. O segundo problema remete à enorme discricionariedade que o policial possui para produzir os primeiros (e muitas vezes os únicos) registros oficiais do crime e para atribuir a raça/cor a alguém com base em suas percepções. Com isso, ele sela o destino desse suspeito: se negros têm maiores chances de receber a prisão preventiva e de serem condenados por homicídio, roubo e tráfico de drogas, então, é possível afirmar que o recorte racial importa. Argumentamos que a identificação da raça do suspeito pelo policial de linha de frente, sem que haja um  momento para a revisão dessa categorização, condiciona as percepções dos operadores do direito nas etapas subsequentes. Quanto mais essa imagem se enquadra nas molduras do “elemento suspeito”, maior a possibilidade desse profissional antever o acusado como “perigoso”, o que tem efeitos diretos na decisão que será dada. É possível que casos cujo marcador racial já seja entendido pelo policial como uma categoria explicativa do “crime” e do “criminoso” sejam aqueles em que essa informação será preenchida (já que esse não é um campo obrigatório).

O terceiro problema diz respeito à negação do reconhecimento da identidade desses sujeitos. Se eles são perguntados sobre a idade e o estado civil, deveriam ser indagados sobre como se identificam em termos de raça/cor. Tal questão reverbera na ausência de comparabilidade entre as informações sobre raça produzidas pelo sistema de segurança pública e justiça criminal e aquelas coletadas por intermédio do Censo. Se nas pesquisas populacionais a opção brasileira foi por indagar aos próprios sujeitos sobre esse elemento constitutivo de sua identidade, conferindo precedência à autodeclaração racial, dentro do sistema essa política é transformada em identificação racial por terceiros. Isso demonstra o autoritarismo e a negligência na maneira como essas organizações tratam a questão racial.

Nesse sentido, sustentamos que nos sistemas de segurança pública e justiça criminal a informação sobre raça/cor dos suspeitos é, na verdade, um processo de estigmatização e negação de direitos. A negligência e o apagamento da questão racial no interior dessas instituições são expressões do racismo institucional e impedem que a raça seja incluída como chave analítica para compreender fenômenos sociais relevantes, como o funcionamento do sistema de segurança pública e justiça criminal no Brasil. Nesse sentido, podemos dizer que é o próprio Estado que contribui para a invisibilidade e para a perpetuação do racismo, pois na medida em que as estatísticas policiais, judiciais e prisionais deixam de explicitar a raça dos sujeitos rotulados como “criminosos”, acabam por ocultar indagações e naturalizar desigualdades que esse marcador suscita.

Para além da tradicional cultura de ausência de dados nas burocracias públicas que administram aquilo que é considerado ilegal, um aspecto que contribui para que a raça seja desconsiderada é a presença, dentro do sistema de justiça, de discursos universalistas que evocam a ideia de democracia racial e de igualdade. Ou seja, a racialização dos corpos não é acionada de maneira afirmativa ou para reconhecimento das diferenças. Pelo contrário: o conjunto de características inscritas no corpo é mobilizado para associar negritude à criminalidade.

Em resumo, a identificação racial não é entendida como elemento que compõe a identidade e dignidade dos sujeitos no âmbito do sistema de justiça, uma vez que o dado racial também é obtido a partir do registro que o policial faz, sem maiores questionamentos ao longo do processamento. Tal concepção ainda serve de justificativa para o não investimento na coleta de informações sobre raça no conjunto de documentos policiais e jurídico-penais, a partir de metodologias semelhantes àquelas usadas no Censo Demográfico e em outras pesquisas do Instituto Brasileiro de Geografia Estatística (IBGE). Se o apagamento de dados raciais e a desconsideração da raça como elemento fundamental e constitutivo da identidade dos sujeitos são traços que marcam a produção nacional de estatísticas criminais, acreditamos que o sistema de segurança pública e justiça criminal tenha muito a aprender com a experiência de um outro importante campo da política pública: a educação, que nos oferece exemplos de que é possível mudar esse cenário. Mas isso é assunto para uma outra coluna no Fonte Segura.

 

  • Texto originalmente publicado no livro: Estatísticas de Segurança Pública: produção e uso de dados criminais no Brasil. A íntegra pode ser acessada aqui.

 

Newsletter

Cadastre e receba as novas edições por email

Captcha obrigatório
Seu e-mail foi cadastrado com sucesso!

EDIÇÕES ANTERIORES