Novas medidas, mesmos dilemas: a criação da Política Nacional de Atenção à Pessoa Egressa do Sistema Prisional (PNAPE)
A recém-criada política de atenção às pessoas egressas pode perder sua força e não atingir sua finalidade se ficar à mercê de descompassos políticos que, embora façam parte do jogo democrático, podem esvaziar a eficácia desse novo decreto
Juliana Brandão
Doutora em Direitos Humanos pela USP e pesquisadora sênior do Fórum Brasileiro de Segurança Pública
Com o reconhecimento de um cenário de grave e massiva violação de direitos fundamentais nas prisões brasileiras, traduzido no jargão jurídico pelo conceito “estado de coisas inconstitucional” (ADPF 347), o STF determinou um conjunto de medidas a serem adotadas pelo Poder Público a fim de superar essa situação. O ano era 2015 e a pretensão, ao provocar a atuação do Judiciário, foi a de assegurar a aplicação concreta da ordem processual penal, com vistas a reduzir a superlotação e as condições degradantes do encarceramento.
A despeito desse notório atestado de falha estatal estrutural, ainda assistimos ao vertiginoso e constante aumento da população carcerária brasileira que, em 2022, superou a marca de 832 mil pessoas sob a tutela do Estado, das quais 68,2% são negras, conforme assinalou o 17º Anuário Brasileiro de Segurança Pública (2023).
Quase uma década se passou desde aquela manifestação da Corte Suprema, para vermos no final de 2023, pela via do Poder Executivo, a edição do Decreto 11843, que instituiu a Política Nacional de Atenção à Pessoa Egressa do Sistema Prisional – PNAPE, que se posiciona de forma articulada com a política anteriormente erigida pelo Judiciário (Resolução 307 de 17/12/2019), e que regulamenta os artigos 10, 11 e 25 a 27 da Lei de Execução Penal (LEP).
Em vigor desde a sua publicação e estruturada em três subdivisões, a PNAPE traz o desenho geral da política, os princípios norteadores da ação pública, assim como a competência para sua implementação.
Importante passo foi dado com o alargamento do conceito da pessoa egressa e com o reconhecimento das pessoas pré-egressas, como foco importante de atenção (art. 2º). Antes, com a delimitação temporal estabelecida na LEP, no artigo 26, incisos I e II, o alcance da política de reintegração social atingia o liberado definitivo apenas pelo prazo de um ano a contar da saída do estabelecimento prisional ou o liberado condicional, pelo período de prova.
Com a ampliação dos contornos normativos, os efeitos estigmatizantes da vivência prisional passam a ser considerados como balizas orientadoras da política. Isso porque a PNAPE agora considera a pessoa como egressa do sistema prisional, independentemente do tempo de permanência no cárcere. E nesse ponto a política vai ao encontro das pessoas que tenham vivenciado a institucionalização penal, enfrentando possíveis obstáculos derivados justamente da privação de liberdade. Com a fragilização de vínculos sociais, a pessoa egressa é potencial destinatária de uma política pública que viabilize o acesso, entre outros, a assistência, saúde, educação, renda, trabalho e moradia.
De modo complementar, a previsão de atendimento já ao pré-egresso, ao se dispor a preparar a retomada para a vida fora das grades em período anterior a seis meses da liberação definitiva, permite que o peso da reinserção social seja melhor distribuído, por meio de medidas que assegurem direitos a pessoas que, provavelmente, seriam rejeitadas pelos estereótipos associados às pessoas egressas do sistema prisional e excluídas do mercado de trabalho formal.
A Secretaria Nacional de Políticas Penais (SENAPPEN) é a instância responsável, dentro do Ministério da Justiça e Segurança Pública, por articular com os demais órgãos da Administração Pública a institucionalização da PNAPE (art. 3º).
No entanto, o decreto 11843/23 estabeleceu competência concorrente, que se materializa mediante adesão voluntária e formal à PNAPE em atribuições específicas. Neste ponto, chama atenção que tenham ficado a cargo, respectivamente, dos Estados e Distrito Federal, a estruturação da rede de apoio às pessoas egressas e aos seus familiares (art. 10, inciso III) e dos Municípios, a criação de programas de trabalho, de geração de renda e de inclusão de pessoas egressas no mercado de trabalho (art. 11, inciso IX). Ainda a se destacar que o fomento, planejamento e coordenação de estratégias de mobilização de pessoas pré-egressas foi elencado como atribuição concorrente dos Estados e Distrito Federal (art. 10, inciso IV).
Na medida em que a normativa prevê a via da adesão voluntária para a competência concorrente ser exercida, frente a uma eventual não adesão, o que se tem é a chancela de uma barreira de implementação, que para ser transposta, na prática, abre margem para uma demanda judicial. Ou seja, se não quiser, nada fará o ente federado atuar, a não ser, em tese, a atuação do Judiciário. A se notar, inclusive, que o decreto 11843/23 não estabelece prazo para a realização da referida adesão.
Dessa dinâmica trazida pelo decreto 11843/23 também se infere um suposto ímpeto colaborativo, que pressupõe uma visão pacificada do que seria uma política de atenção à pessoa egressa. Se esse consenso em torno do tema já existisse, com base nos objetivos fundamentais previstos na Constituição Federal de 1988 e mesmo levando em conta a adesão do Brasil a tratados e acordos internacionais de Direitos Humanos, sequer precisaríamos de nova normativa para implementar essa política.
É inegável que a nova legislação foi criada justamente para promover melhorias no sistema prisional e ingressou no quadro normativo a fim de regulamentar a Lei de Execução Penal e torná-la exequível. Contudo, apesar dos potenciais ganhos com os conceitos de egresso e pré-egresso, a recém-criada política de atenção às pessoas egressas pode perder sua força e não atingir sua finalidade se ficar à mercê de descompassos políticos que, embora façam parte do jogo democrático, podem esvaziar a eficácia desse novo decreto, sob o manto da discricionariedade administrativa.
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A cor da questão
Esta coluna inaugura um espaço plural para debates, reflexões e proposições que tragam o recorte racial para o centro dos diálogos sobre segurança pública.
Assumindo que as discussões sobre a atividade policial, o sistema de justiça e a gestão da segurança pública são atravessadas pelo racismo, o FBSP tem se proposto a ampliar as perspectivas das produções nessa área, deslocando as tensões em torno dessa temática para a produção e o enriquecimento da prática democrática.