Múltiplas Vozes

Novamente a Cracolândia

O trabalho a ser feito é longo e tem de ser contínuo: polícia impedindo que a droga chegue, assistência social mantendo programas como o “Braços Abertos”, a saúde oferecendo tratamento para aqueles que desejarem e os urbanistas planejando um centro da cidade melhor

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Guaracy Mingardi

Analista criminal e membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública

Os recentes tumultos na região da Luz, em São Paulo, trazem de novo ao noticiário a questão dos usuários de drogas que vivem na região, os “nóias”. E desta vez a confusão provocou a morte de um desses indivíduos: Raimundo Fonseca Júnior, de 32 anos, que, segundo consta, morava em albergues da região. A morte ocorreu durante uma grande operação, da qual participaram mais de 600 policiais, entre civis, militares e guardas municipais. O objetivo seria cumprir mandados de prisão e retirar as barracas de usuários de drogas da Praça Princesa Isabel, núcleo atual da Cracolândia. A morte teria sido decorrência de um tiro feito por um policial civil, que alega ter disparado para o chão, visando assustar, não atingir.

Seja qual for o motivo da morte, não é a primeira vez que o conflito entre policiais e nóias se torna violento. Essa é uma constante desde os primeiros dias da Cracolândia. E que vai continuar se repetindo enquanto o estado tratar a questão de forma segmentada, com cada área se preocupando apenas com um aspecto de um problema que tem, pelo menos, quatro aspectos: urbanístico, social, policial e de saúde.

Aliás, foram veiculadas notícias de que, nessa última faceta, a da saúde, órgãos estaduais estariam tentando recorrer a uma velha fórmula, que já se mostrou falha, além de ter problemas de legalidade – a internação compulsória de usuários de crack.

As questões legais deixo para os juristas de plantão, mas os outros três obstáculos a essa medida são bem práticos. O primeiro é que internar um usuário é caro. O segundo é a falta de locais adequados para internação em número suficiente para dar conta dos “nóias” que circulam na capital paulista. E o terceiro, que quase nunca é mencionado, diz respeito a uma grande parcela dos que vivem na Cracolândia que se acostumaram e/ou gostam da vida que levam, e não só por causa do crack. E para entender essa última afirmação é necessário visualizar a realidade das ruas, coisa que vai além das imagens de TV ou da breve visualização de quem passa rapidamente de carro pela região.

Ao contrário do que supõe a maioria, muitos dos “nóias” não moram na rua. Alguns alugam espaço nos cortiços e pensões da região; outros, como Raimundo, residem temporariamente nos albergues públicos e um terceiro grupo nas barracas cedidas por ONGs. E os mais miseráveis, muitos deles no limiar da pobreza absoluta, disputam espaço embaixo das marquises.

Outro mito é que eles vivem sem fazer absolutamente nada. Se assim fosse poderiam até sobreviver, graças às marmitas fornecidas pela caridade ou serviço púbico, mas não teriam acesso ao crack, às pedras. São elas, afinal, que os leva a se juntar nessas comunidades de usuários. O motivo é que a comida pode ser gratuita, mas os traficantes não fornecem de graça para ninguém. E os caminhos para conseguir sustentar o vício são quatro: mendicância, furto (principalmente de celulares),  microtráfico e alguns sortudos que sobrevivem por conta de dinheiro fornecido pela família.

Praticamente todos os que caminham pela região central de São Paulo são abordados por pedintes, alguns com histórias elaboradas, que o dinheiro é para comprar medicamentos, comida para as crianças, para poder voltar para casa, etc. Outros simplesmente dizendo que têm fome. Apesar de as histórias nem sempre serem falsas, muitas vezes são abordagens típicas de quem está procurando financiar a próxima pedra.

O furto de celulares é uma atividade constante, tanto para os usuários de crack como para ladrões comuns. E que não vai sumir, ou mesmo diminuir, enquanto a polícia fizer o de sempre: prender o ladrão lento o suficiente para ser apanhado. A única forma de atenuar o problema é centrar a atuação na identificação e prisão dos receptadores. Sem eles não existe mercado, sem mercado os roubos cairiam exponencialmente.

Quanto ao microtráfico, essa é uma atividade muito disputada entre os “nóias”. Fazer parte da cadeia de distribuição da droga é o melhor meio de chegar ao produto desejado, além de aumentar o vínculo com os traficantes que mandam na área.

Outra coisa que a maioria desconhece é que o crack muitas vezes não é o único vínculo que liga usuário e traficante. Existe também uma espécie de patronato que vincula a maioria dos drogados da região a um dos pequenos ou médios traficantes que circulam entre eles. Eles compram do patrono, vendem em seu nome e obedecem quando ele manda ir contra a polícia, mas também se sentem acolhidos, dependentes da proteção dele. Um exemplo desse acolhimento são os churrascos que aconteciam no meio da praça Princesa Isabel. Bancados pelos traficantes, os apadrinhados compravam com dinheiro vivo não apenas a carne, mas também uísque, energéticos e gelo de água de coco, para fazer o chamado combo de uísque. Com esses ingredientes as festas eram garantidas. Pelo menos para os que faziam parte do círculo do patrocinador. Aos outros restava invejar os colegas e se esforçar para conseguir um patrono.

Ou seja, a questão vai além do uso de crack, embora esse seja o elemento central do problema. Os anos criaram uma espécie de convivência nas ruas, que não será desfeita com simples operações policiais. O trabalho a ser feito é longo e tem de ser contínuo: polícia impedindo que a droga chegue, assistência social mantendo programas como o “Braços Abertos”, a saúde oferecendo tratamento para aqueles que desejarem e os urbanistas planejando um centro da cidade melhor.

Se isso não for feito, o problema vai persistir, e de tempos em tempos irei chatear vocês com novos artigos sobre a Cracolândia, discutindo ações que não deram certo.

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