A cor da questão 21/02/2024

“Negro é sempre vilão, até meu bem provar que não”: a violência institucional visível

Enquanto o fenótipo negro for tratado como um delito em si e como uma arma que justifica todo e qualquer tipo de intervenção junto e contra os corpos que o carregam, estaremos chancelando, impunemente, o racismo

Compartilhe

Juliana Brandão

Doutora em Direitos Humanos pela USP e pesquisadora sênior do Fórum Brasileiro de Segurança Pública

Os versos que dão título a esta coluna, cantados já nos anos 1990 pelo primeiro bloco afro do Brasil, Ile Aiyê, trazem uma face que está incrustada no imaginário popular – a imagem do negro, a priori, como um infrator. Contudo, na mesma medida, a canção segue na crítica e pontua o outro lado da história – o racismo institucional, que justamente escamoteia eficazmente essa leitura. Ambos serão mote para aqui tratarmos, por meio de um caso concreto, da violência estrutural que evidencia que a forma na qual a sociedade brasileira está organizada funciona como um motor para exclusão, discriminação e negação de direitos.

Foi no rescaldo do Carnaval que vimos circular não só a notícia, bem como imagens de um fato que nos põe frente a frente com o reconhecimento da força do racismo e da urgência de questionarmos os mecanismos que ainda o sustentam. A narrativa divulgada descreveu que um homem negro, cujo nome inclusive já é de domínio público, sofrera uma tentativa de homicídio e, a despeito disso, foi conduzido por policiais da Brigada Militar do Rio Grande do Sul como investigado, sendo que o autor da ofensa, um homem branco – tratado em algumas mídias como “o idoso” – foi liberado no local da ocorrência. Testemunhas gravaram a atuação policial e se insurgiram, gritando que o homem prestes a ser algemado é quem tinha sido esfaqueado no pescoço; falaram ainda que “é racismo”, mas nada deteve a conduta dos policiais.

Até o momento, não temos o desfecho do caso. Mas é válido refletirmos sobre a atuação policial e as ferramentas disponíveis pelo sistema de justiça nessa situação.

Com 186 anos, a Brigada Militar do Rio Grande do Sul tem em seu Estatuto, disciplinado pela Lei Complementar Estadual 10.990, de 18 de agosto de 1997, 163 artigos que cuidam da situação, das obrigações, dos deveres, dos direitos e prerrogativas dos servidores militares que a integram.

Muito embora se trate de normativa posterior ao regramento constitucional de 1988, ali não se tem qualquer menção expressa que aproxime as atribuições desses profissionais da defesa de direitos fundamentais. É bom que se diga que aqui não se está apontando para a lei no sentido estrito como mecanismo com o condão automático de promover a defesa de direitos. No entanto, é inegável que, dentro do pacto social democrático, as balizas que sustentam o Estado de Direito precisam estar consensuadas na lei, como um primeiro passo em direção a um devir, que promova a inclusão de todos como cidadãos e que permita contornos evidentes que equilibrem as expectativas do que pode ou não ser cobrado dos agentes estatais.

Previsto como imprescritível e inafiançável na CF de 1988, o racismo enquanto tipo penal teve seus contornos jurídicos definidos na Lei Caó, que completou 35 anos de vigência em 2024.

É o quanto basta para reprimir a discriminação racial? Sabemos que não.

Para além da previsão legislativa, a resposta estatal à ofensa racial demanda, no mínimo, o funcionamento conjunto e concatenado da disposição da vítima em denunciar e da insuficientemente discutida subsunção do fato à norma. Esta última, na prática, só levará a uma sentença condenatória se, ao longo do processo penal, sobreviver juridicamente às várias investidas que lhe serão feitas, questionando, sobretudo, a sua própria existência.

Ou seja, precisamos contar com uma institucionalidade penal sólida e, ao mesmo tempo, permeável, a reconhecer que o Estado falhou na promoção da igualdade. Acontece que essa abstração encontra concretude nas pessoas que irão operar os dispositivos jurídicos, imersas em contextos e estruturas que, não raro, trabalham como anteparos ao reconhecimento da existência do racismo. E na medida em que, ao invés de reconhecê-lo, nega sua existência, retroalimenta-o com ainda mais força garantindo que se perpetue.

E como essa engrenagem se sustenta com eficiência, a ponto de se manter em atividade?

É sedutor, porém um tanto simplista tentar vincular essa discussão a tão somente uma questão de uma soma aritmética de escolhas individuais, pautadas por repertórios e vivências específicas. Se assim fosse, apenas considerando o contingente majoritariamente negro no conjunto da população brasileira seria desarrazoado defender que esse mesmo público atuasse em seu próprio desfavor. É do humano a luta pela existência digna.

Assim, levando em conta, de saída, que estamos frente a um debate político, que coloca em xeque posições de poder e manutenções de privilégios, apurar se houve racismo no caso aqui em discussão é sem dúvida imprescindível. Mas não nos livra de aprofundarmos a questão de olharmos, com lupa, para as estruturas dominantes, que tanto têm silenciado acerca da existência do racismo no Brasil.

Para chegarmos a saídas sustentáveis precisamos, antes, estar convictos das causas que motivam o desvalor da igualdade racial e de uma consistente doutrina antirracista. Enquanto o fenótipo negro for tratado como um delito em si e como uma arma que justifica todo e qualquer tipo de intervenção junto e contra os corpos que o carregam, estaremos chancelando, impunemente, o racismo.

Newsletter

Cadastre e receba as novas edições por email

Captcha obrigatório
Seu e-mail foi cadastrado com sucesso!

EDIÇÕES ANTERIORES