‘Não tô nem aí!’: o que a Operação Verão tem em comum com a Chacina de Varginha
A constatação de disparos “forjados” e a modificação intencional da cena, com desalinho e adulteração de vestígios, constituem parte do modus operandi que aproxima Varginha da Operação Verão
Cássio Thyone Almeida de Rosa
Graduado em Geologia pela UnB, com especialização em Geologia Econômica. Perito criminal aposentado (PCDF). Professor da Academia de Polícia Civil do Distrito Federal, da Academia Nacional de Polícia da Polícia Federal e do Centro de Formação de Praças da Polícia Militar do Distrito Federal. Ex-presidente e atual membro do Conselho de Administração do Fórum Brasileiro de Segurança Pública
A Operação Verão, realizada pelas forças de segurança de São Paulo na Baixada Santista, produziu 56 mortes e denúncias relacionadas a ações que podem ser enquadradas em fraude processual. As ações incluem modificações intencionais em cenas de crime e remoção de corpos já em óbito dos locais de crime, descaracterizando a cena antes do início dos exames periciais.
Já acostumados ao modus operandi policial, que por todo o país disseminou uma prática mais do que simplesmente esperada, mas até banalizada, não teríamos razão para grande surpresa. Mas no caso da Operação Verão uma nova escalada no procedimento ganhou as manchetes: a coação de profissionais da área de saúde, em especial do SAMU (Serviço de Atendimento Móvel de Urgência) e da Santa Casa de Santos. A denúncia partiu dos próprios profissionais, que relataram que os corpos das vítimas foram encaminhados já sem vida para passar por atendimento nas unidades de saúde.
Em outra matéria veiculada na mídia, relatos apontam que policiais militares se negaram a fazer a escolta e proteção das equipes periciais em locais de crime. Além das alterações produzidas nas cenas, a falta de garantias para a realização dos exames acrescenta severos prejuízos à investigação e à busca da verdade em relação a locais extremamente sensíveis, uma vez que envolvem, na maioria das vezes, confrontos policiais, resistência, troca de tiros e morte. Um enredo mais do que conhecido em boletins de ocorrência preenchidos de forma quase automática nas delegacias da região.
Sem deixarmos o tema, a divulgação do relatório final da Polícia Federal sobre a Chacina de Varginha ( MG), ocorrida em outubro de 2021, também repercutiu. Nesse episódio, caracterizado como uma operação que envolveu a PRF (Polícia Rodoviária Federal) e a PMMG (Polícia Militar de Minas Gerais), representadas por seus grupamentos de elite, 26 pessoas, suspeitas de integrar uma quadrilha especializada em assaltos que ficaram conhecidos como “Novo Cangaço”, foram mortas em supostos confrontos. Na operação participaram 50 policiais (28 da PRF e 22 da PMMG). Importante lembrar que nenhum policial foi ferido.
Nesse caso, a perícia realizada pela Polícia Federal produziu um trabalho gigantesco, subsidiando um relatório final que pede o indiciamento de 22 policiais rodoviários federais e 16 policiais militares.
O laudo, segundo informações divulgadas, com mais de mil páginas, mostrou, entre outros:
– 310 estojos deflagrados, dos quais apenas 20 provenientes de disparos efetuados pelas armas dos bandidos (comprovação por exames de confrontos balísticos);
– A reconstrução de mais de 200 trajetórias de tiros na ação policial;
– Que a tese de confronto sustentada pelos policiais foi desmontada: apenas um dos 26 homens que foram mortos reagiu com tiros à chegada dos policiais, que executaram o grupo sem chance de defesa;
– Que alguns tiros atribuídos aos assaltantes foram, na verdade, forjados;
– Que nenhum dos 26 corpos foi examinado no local (duas chácaras);
– Que os exames nos corpos comprovaram que, dos 26 mortos, 17 apresentavam pelo menos “uma lesão póstero-anterior“, ou seja, tiros pelas costas. Muitos corpos apresentavam, ainda, lesões de defesa (tiros que produziram lesões nos braços e antebraços);
– Que as armas dos assaltantes foram desembaladas de suas caixas e empregadas para forjar disparos (20 disparos entre os mais de 500 disparados nos locais);
– Indícios de tortura em algumas das vítimas;
– Características de execução em muitas das mortes;
A remoção de corpos já em óbito (pelo menos duas vítimas com perdas importantes de massa encefálica), ocorrida 50 minutos depois da entrada e atuação dos policiais, a constatação de disparos “forjados”, a modificação intencional da cena, com desalinho e adulteração de vestígios, constituem o modus operandi que aproxima Varginha da Operação Verão.
Mas o que vem depois? O Ministério Público deve se manifestar e assumir as investigações referentes à suspeita de fraude processual em todos os casos. O embate jurídico já se instalou no caso de Varginha. A PMMG se nega a permitir que seus policiais prestem depoimento na Polícia Federal, alegando que a apuração da conduta dos militares é de competência da Polícia Judiciária Militar, e não da Polícia Federal. Já a Polícia Federal reforça que tem competência sobre o inquérito, já que se trata de crime comum.
Já no caso da Operação Verão, o governador de São Paulo, que é quem comanda na realidade a Polícia Militar, ao ser confrontado com as acusações, saiu-se com frase icônica: “E aí, o pessoal pode ir na ONU, na Liga da Justiça, no raio que o parta, que eu não tô nem aí”.
No mínimo assustador o patamar que alcançamos em relação ao tema. Enquanto a morte por ações policiais se banaliza, a chamada carta branca para matar vai se consolidando em nossa sociedade, calcada num frágil estado democrático de direito (que só serve em verdade aos privilegiados).