Gilvan Gomes da Silva
1º Sargento da Polícia Militar do Distrito Federal, doutor em Sociologia, professor do Instituto Superior de Ciências Policiais (PMDF) e pesquisador do Núcleo de Estudos sobre Violência e Segurança (UnB)
Duas notícias sobre segurança pública no Rio de Janeiro destacaram-se em julho de 2024. A primeira, no início do mês, acerca de uma abordagem policial no Rio de Janeiro a jovens, com média de idade de 14 anos, que caminhavam na calçada e preparavam-se para entrar em um edifício residencial. Os policiais militares se aproximaram com a viatura e, com as armas apontadas para os jovens, iniciaram a revista pessoal. Ao perceberem que três jovens negros abordados eram filhos de diplomatas, interromperam a abordagem e retornaram ao patrulhamento. Após a repercussão do caso, ministros do Governo Federal criticaram a abordagem e, por meio do Itamaraty, pediram desculpas às famílias dos jovens negros abordados e investigação do caso.
A segunda notícia se refere ao julgamento dos três policiais civis envolvidos na morte de João Pedro, de 14 anos, em 18 de maio de 2020, quando, em uma operação policial conjunta entre a Polícia Civil do Rio de Janeiro e a Polícia Federal, houve confronto. Um suspeito fugiu para perto da casa de João, que brincava no interior da residência. Segundo os policiais, uma granada foi lançada pelos suspeitos, que adentraram a casa, momento em que os policiais continuaram atirando. A casa ficou com mais de 70 marcas de tiros de fuzil, sendo que um disparo atingiu as costas de João Pedro.
Essas duas notícias são emblemáticas, porque sintetizam a complexidade da política de Estado de segurança pública no Rio de Janeiro, mas também guardam similaridades com outras unidades federativas. Os atores, as instituições e o ponto central das reportagens, entre outras características, compõem o complexo e histórico enredo dos objetivos das práticas institucionalizadas, assim como o “espanto” com as práticas “reveladas”, como as “reações” de alguns segmentos da sociedade. Nas entrelinhas, o espanto e as reações levam a crer no ineditismo dos fatos ou que alguns indivíduos incorreram em desvio de conduta.
Entretanto, o próprio Governador do Rio de Janeiro trouxe os fatos à realidade: “É muito complicado para o policial saber se é filho de um diplomata, de um rico, se é filho de alguém que está cometendo um delito”. O que se pode concluir é que o erro é o descolamento das personagens da realidade construída racialmente com o binômio negro e diplomata. Portanto, para o governador, fizeram o esperado.
É um ato comum. Várias pesquisas locais, regionais e até nacionais[1] descrevem que a abordagem é a principal ação das polícias militares e que é direcionada a jovens e, em sua maioria, negros. Acrescento que, segundo o governador, testemunhas relataram que a abordagem foi “normal”; é uma violação do direito “normal”. Essa institucionalização da prática policial, fundamentada na lógica de combate ao inimigo, segue marcadores racializados que orientam as operações. Como consequência, as ações individuais de abordagens estão diretamente relacionadas às operações policiais pelo mesmo princípio. É o lugar que pode combater, por haver grupo de pessoas abordáveis. Novamente, nas entrelinhas da absolvição está: como saber que em um lugar assim se pode atingir um jovem que não é do crime? Ou até mesmo, na mesma lógica: a morte do jovem é um risco “suportável”. Novamente, não há erro de execução propriamente dito, há erro nas expectativas de alguns, o que seria insuportável.
O grupo dos abordados é constituído por aqueles mesmos que têm seus espaços sujeitos às operações policiais, porque é resultante do mesmo processo, porque é constituído da mesma estrutura social, e constitui-se, como diria Bourdieu, como uma violência simbólica, estruturada e estruturante com consequência, inclusive, na manutenção da ordem desigual.
O processo socio-histórico impacta na construção da realidade da distribuição populacional nas diversas regiões fundamentadas na intersecção racial e econômica, assim como a constituição das políticas de controle social a partir das instituições do Estado da Segurança Pública. Entretanto, em paralelo às políticas de educação, de trabalho, de moradia, entre outras, as políticas de segurança pública alinham-se à matriz de manutenção da estratificação social e, também, um empecilho para a mobilidade social com o objetivo de manutenção da ordem, manutenção de cada indivíduo ou grupo em seu lugar geográfico ou posição social.
Os vácuos normativos não só possibilitam como determinam maiores demandas interpretativas limitadas pelas estruturas sociais, individualizando a responsabilidade das ações. Todavia, os controles sociais e a manutenção dos acúmulos de capitais políticos e jurídicos limitam e orientam as interpretações situacionais e organizam para quem determinadas ações devem ser executadas.
As ações de proteção e de contenção ou repressão são limitadas pelas estruturas sociais e suas distribuições são para grupos específicos: de um lado para os grupos que detêm os capitais econômicos, jurídicos, políticos e sociais e de outro lado aqueles que não os têm; de um lado as possíveis vítimas e do outro os possíveis agressores; de um lado os que devem ser protegidos e do outro lado os que não podem se proteger; de um lado as possíveis pessoas que podem influenciar nas vidas de outros (inclusive dos operadores das políticas públicas) e do outro lado as pessoas que possivelmente têm suas vidas influenciadas.
Quem analisa a ação dos operadores das políticas de segurança (policiais, promotores, juízes, entre outros) individualizando as ações de violações de direitos (seja na pessoa do operador seja na instituição) comete o mesmo erro de quem analisa somente o crime e não a criminalidade. Talvez fundamentado em um mito de que as políticas de segurança pública no Brasil foram e são orientadas para o bem-estar social de todos os segmentos da sociedade. Talvez por isso a expectativa de que as ações estejam indo ao encontro do esperado pelos representantes do Estado como, por exemplo, o governador.
As ações no campo da segurança pública que resultam na garantia de direitos individuais e coletivos que contemplam os grupos de pessoas que não detêm o acúmulo de capitais não são de iniciativa do Estado Brasileiro, mas de conquistas de movimentos sociais e/ou da sociedade civil organizada que possibilitaram tornar as ações objetivas, assim como a produção de protocolos de atendimento e de roteiros processuais, tendo como uma das consequências a maior produção de conhecimento específico e científico.
Infelizmente não há ineditismo nas ações dos policiais, nas decisões judiciais ou na fala do chefe do Poder Executivo local. Embora noticiada pontualmente, quase em um caráter individual e atípico, a realidade demonstra que atípicas seriam as ações invertidas: pedidos de desculpas espontâneos para as pessoas brasileiras com direitos violados pelo Estado; culpabilização dos operadores e dos governantes sem a necessidade de manifestação da sociedade civil organizada; construção de Procedimentos Operacionais em conjunto com a sociedade civil e revisão das ações estabelecidas conjuntamente com o intuito de aprimorar a manutenção dos instrumentos de garantia de direitos individuais e coletivos; e, finalmente, implementação de políticas de segurança pública fundamentadas cientificamente e em evidências, com metas mensuráveis e que priorizem a vida e os direitos humanos de todos.