Mortes em confrontos policiais: interior reproduz conhecidos clichês da Segurança Pública
Ação da Polícia Militar de Goiás, que resultou em quatro mortes na região da Chapada dos Veadeiros, dificilmente será apurada a contento, pois ocorreu a partir de uma série de vícios: não há informação de exames periciais no local do crime ou nas armas, e as vítimas foram socorridas em circunstâncias mal explicadas
Cássio Thyone Almeida de Rosa
Graduado em Geologia pela UNB, com especialização em Geologia Econômica. Perito Criminal Aposentado (PCDF). Professor da Academia de Polícia Civil do Distrito Federal, da Academia Nacional de Polícia da Polícia Federal e do Centro de Formação de Praças da Polícia Militar do Distrito Federal. Ex-Presidente e atual membro do Conselho de Administração do Fórum Brasileiro de Segurança Pública
Na última semana, ao atender uma demanda para uma entrevista a uma rede de TV de Goiânia, para tratar do tema relacionado à instalação de câmeras de segurança nas fardas de policiais, tomei conhecimento de um fato ocorrido na região da Chapada dos Veadeiros, um dos redutos turísticos mais frequentados pelos moradores do Distrito Federal. Não fosse assim, esse caso provavelmente teria passado despercebido por mim, assim como seria para a maioria das pessoas. A razão? Um caso de reduzida repercussão, que ressoa apenas localmente e, ainda que muito pouco, regionalmente.
Na zona rural, no dia 20 de janeiro passado, entre as cidades de Colinas do Sul e Cavalcante, em Goiás, região da Chapada dos Veadeiros, policiais militares teriam invadido uma chácara com o objetivo de reprimir o plantio de maconha, ação que culminou com quatro mortes, em evento no qual se contabilizaram 58 disparos de arma de fogo.
As vítimas foram: Ozanir Batista da Silva, de 46 anos, conhecido como Niro ou Jacaré; Chico Kalunga, que não teve o nome completo divulgado, ambos lavradores e vizinhos da plantação de maconha; Salviano Souza Conceição, de 63 anos, apontado como o dono da plantação, mas que, segundo amigos, não seria uma pessoa de comportamento violento; e Alan Pereira Soares, de 27 anos, morador de Colinas do Sul.
As informações veiculadas na mídia deram conta de que existem versões diferentes para o ocorrido.
1ª Versão: Na versão da Polícia Militar de Goiás, uma equipe composta por seis policiais se dirigiu a uma propriedade, na zona rural do município, para checar uma denúncia anônima, relacionada a plantio e tráfico de drogas, quando foi recebida a tiros por pelo menos sete suspeitos. Na troca de tiros, quatro suspeitos foram atingidos e os demais teriam se evadido. No local teriam sido encontrados 500 pés de maconha (no início a PM teria divulgado erroneamente que eram cerca de 2 mil pés). Nas declarações, os policiais militares afirmaram que atiraram contra os suspeitos “ao revidarem a injusta agressão”.
Consta no boletim de ocorrência que, dos 58 disparos efetuados por seis policiais, 40 foram de fuzil e 18 de pistola, e que os elementos baleados chegaram a ser levados para o hospital de Colinas do Sul, porque na região não havia sinal de telefone para chamar o resgate, como determina o procedimento padrão da PM. Eles estavam mortos quando foram atendidos pela equipe médica. A versão se complementa ainda com as informações de que os suspeitos teriam usado uma espingarda e três revólveres para atirar nos militares, sendo eles de calibre 32, 22 e 38.
2ª Versão: Versão de moradores da região, familiares e conhecidos das vítimas. Segundo eles, não teria havido nenhuma troca de tiros. Relatam que as vítimas não tinham um comportamento violento ou andavam armadas. Seriam camponeses sem absolutamente nada, que viviam de pequenas atividades agrícolas na região, e que precisavam pedir comida frequentemente nas casas daquela zona rural por não terem sequer o que comer. Em relação às armas, sustentam que apenas a espingarda ficava com o grupo, algo nada incomum entre moradores de lugares ermos, que as empregam frequentemente para a caça. Não menos importante é a informação de que todas as vítimas eram negros ou pardos.
Um dos moradores que conhecem as vítimas assim se expressou em uma das matérias:
“Eles não tinham absolutamente nada a ver com a plantação de maconha. E, mesmo o pessoal tendo plantado, não há direito de pena de morte. Eles não tiveram o direito de ser julgados. Precisa usar a palavra “chacina”, porque isso não pode ser normalizado”, disse Murillo Aleixo, produtor cultural e amigo de duas vítimas, Niro e Chico.
Esses são os fatos até aqui disponíveis, mas já é possível identificar uma série de vícios que todos os dias ocorrem em ações parecidas por este Brasil afora:
– NÃO há informação de exames periciais de local de crime!
– Vítimas socorridas em circunstâncias mal explicadas;
– Alegação de confronto e troca de tiros;
– Armas não periciadas, não verificadas e não reconhecidas;
Nesse caminho, com desfecho já previsto, mesmo que ocorra uma apuração pelos órgãos responsáveis (Polícia Civil, Corregedoria da PMGO, Ministério Público de Goiás), estaremos diante de conhecida estatística: ninguém será punido pelo ocorrido!
Um desfecho esperado para um conjunto de clichês que nos remetem a outros episódios cada vez mais frequentes, nesta que é uma das nossas verdadeiras pandemias: a letalidade policial.