Missão dada, missão cumprida: os desafios de uma gestão estratégica nas polícias civis
Com a exigência de planejamento estratégico proposta pela lei orgânica das polícias civis, espera-se que indicadores e metas também sejam produzidos e publicizados, o que pode permitir análises mais detalhadas dos processos daquelas corporações
Alexandre Pereira da Rocha
Doutor em Ciências Sociais. Policial Civil do Distrito Federal. Associado ao Fórum Brasileiro de Segurança Pública
No campo da gestão organizacional, a missão tem a ver com a identidade e razão de ser da organização. Nesse caso, uma vez estabelecida a missão, também se definem as competências. Destaca-se que a ideia de missão organizacional surgiu no debate da administração moderna e vislumbra uma gestão estratégica a fim de delimitar adequadamente a função primordial de dada organização. Como em outros setores do poder público, o debate sobre missão vem tomando as polícias civis. Inclusive, algumas já esboçam isso em documentos de planejamento estratégico.
Nesse sentido, por exemplo, citam-se as missões constituídas pelas polícias civis de São Paulo, Paraíba e Distrito Federal:
“Exercer as funções de polícia judiciária e a investigação criminal, como instituição permanente, essencial à justiça e à segurança pública, promovendo a solução ou composição de conflitos e garantindo o bem estar coletivo e o respeito à dignidade da pessoa humana.” Polícia Civil do Estado de São Paulo
“Investigar infrações penais e solucionar conflitos de forma efetiva, prestando atendimento de excelência à sociedade, para a proteção de direitos e pacificação social.” Polícia Civil da Paraíba.
“Proporcionar segurança pública com excelência na elucidação de infrações penais, no desempenho da função de polícia judiciária e na promoção da cidadania.” Polícia Civil do Distrito Federal
Essa amostra, apesar de estar formada por corporações de unidades da federação distintas, aponta uma convergência para exaltação das atividades de polícia judiciária e elucidação de infrações penais. Em geral, essas corporações refletem o que consta na Constituição Federal como competência, sendo o exercício de funções de polícia judiciária e a apuração de infrações penais. Portanto, em síntese, pode-se dizer que a missão das polícias civis é investigar e elucidar crimes. Esse é o cerne da missão dada pela Constituição e outras normas, além dos planejamentos desenhados pelas próprias organizações.
Por sua vez, sendo a missão das polícias civis investigar e elucidar crimes, dados sobre essas atividades, como quantidades de investigações realizadas e crimes elucidados, deveriam ser de conhecimento amplo a fim de se verificar se a missão está sendo efetivada. Ou seja, se os produtos e serviços apresentados são representativos de uma cadeia de valor proposta no desenvolvimento da missão. Ou ainda: se a missão dada está sendo cumprida.
No entanto, não é fácil aferir dados dos órgãos de segurança pública, ainda mais quando se trata de elucidação de crimes. Ora, praticamente inexiste padronização de dados, tampouco publicidade do que é realizado. Do pouco que pesquisadores e organismos buscam entender, sabe-se que os valores são baixos. Por exemplo, em termos de homicídio, o Instituto Sou da Paz apurou que, entre 2020 e 2021, apenas 35% dos 40 mil homicídios dolosos no Brasil ocorridos em 2021 foram esclarecidos[1]. Agora, quanto aos crimes patrimoniais, sexuais, violências domésticas, entre outros, há desconhecimento generalizado sobre desdobramentos de suas apurações.
Em virtude dessa nebulosidade sobre os desempenhos das investigações das polícias civis, não é possível afirmar se a missão precípua delas – investigar e elucidar crimes – está sendo alcançada. Afinal, ressalta-se que, no contexto de uma gestão estratégica, dados e indicadores são essenciais para mensurar o alcance dos objetivos da organização. Além do mais, destaca-se que a missão não é um aceno de boas intenções, mas um compromisso estabelecido. Logo, ela deve ser monitorada continuamente a fim de que se conheçam os resultados alcançados, o que se dá por meio de dados, indicadores e metas.
Convém assinalar que, no âmbito do poder público, a missão é compromisso com os cidadãos. Trata-se da busca incessante da prestação de produto ou serviço público eficiente, eficaz, efetivo. Ademais, nos dias de hoje, o setor público deve se guiar pelas balizas do estado democrático de direito, com priorização de valores como diversidade, pluralidade, transparência, dignidade da pessoa humana. Nada disso é diferente para os órgãos de segurança pública.
Nesse contexto, as polícias civis devem compreender que a missão principal delas precisa estar alinhada à prestação de serviço público de qualidade aos cidadãos. Para tanto, elas devem primar pela excelência em suas atividades, bem como estabelecer processos que produzam, forneçam e divulguem dados e indicadores para a sociedade civil. Isso quer dizer que é preciso dar transparência aos dados das polícias civis a fim de avaliar se seus desempenhos estão contribuindo para prestação de serviço de segurança pública adequado aos cidadãos.
Por certo, as polícias civis realizam diversos serviços que não se resumem à elucidação de crimes, como fornecimento de certidões, emissão de documentos, realização de perícias em locais de acidentes. De todo modo, são atividades que tangenciam as missões delas. Todavia, também há escasso conhecimento e comunicação dessas atividades, o que inviabiliza ainda mais monitorar o arcabouço de entregas das polícias judiciárias à sociedade.
Diante disso, é oportuno ressaltar que a Lei Orgânica Nacional das Polícias prevê que as corporações devem ter planejamento estratégico de gestão, com metas qualitativas e quantitativas de produtividade e de redução de índices de criminalidade, medidas de otimização e de busca de eficiência. Assim, elas devem proporcionar indicadores que permitam o acompanhamento de suas gestões, seja pela pelas autoridades governamentais, seja pela sociedade civil.
Com a exigência de planejamento estratégico proposta pela lei orgânica das polícias civis, espera-se que indicadores e metas também sejam produzidos e publicizados, o que pode permitir análises mais detalhadas dos processos daquelas corporações. Destarte, a missão das polícias civis já está dada em diversos normativos, mas, agora por meio de uma gestão estratégica, é preciso avançar para saber o quanto, quando, como e onde ela está ou não sendo cumprida.