Milícias low profile: economia de violência, proteção restrita a clientes especiais e crescente envolvimento no tráfico de drogas ilícitas
O enfrentamento à expansão das milícias se mostra um dos maiores e mais complexos desafios da segurança pública em todo o Brasil, com nuances regionais que não reproduzem exatamente o que acontece no Rio de Janeiro
Sandoval Bittencourt de Oliveira Neto
Membro do Conselho Fiscal do Fórum Brasileiro de Segurança Pública
Milícias são grupos irregulares formados quase sempre por agentes e ex-agentes da segurança pública para oferecer “proteção” à margem da lei, mediante o pagamento de taxas e a imposição de serviços irregulares, por meio do controle armado do território e da difusão do terror sobre populações vulneráveis que nele habitam, notadamente onde a presença do Estado é precária.
Há muito que policiais oferecem segurança particular a estabelecimentos comerciais e a famílias abastadas. Da corriqueira oferta irregular de segurança, há casos – não raros – em que os serviços passam a abranger o atendimento a encomendas por mortes, para exterminar pequenos delinquentes que prejudicam os negócios protegidos; não unicamente, mas também toda sorte de concorrentes e desafetos dos contratantes. O fato comum é que esses grupos surgem assim, com a promessa de livrar comunidades da criminalidade.
Afetadas pela expansão do tráfico de drogas ilícitas nos municípios brasileiros, as milícias não tardaram a tirar vantagens da venda da droga nos territórios assolados, onde atuam sobrepostas às facções. Menos como arqui-inimigas que parceiras antigas, considerando que policiais “venais” espoliam criminosos faz tempo.
No Pará, por exemplo, a carnificina que afligiu a região metropolitana de Belém, em 2018, apresenta forte conexão com o envolvimento de milicianos no fornecimento de proteção, armas e munições às facções criminosas e, mais diretamente, na prestação do serviço de execução de rivais oferecido a quem pagasse mais.
O ano assinala o ápice das chacinas que banharam de sangue as ruas das cidades paraenses. No auge da violência, o Ministério Público estadual chegou a asseverar a existência de milícias em todos os bairros pobres da capital e do interior do estado, integradas à economia das drogas ilícitas, mapeando pontos de vendas para extorquir e tirar proveito financeiro das inúmeras atividades relacionadas ao comércio ilegal de entorpecentes e ao “dinheiro sujo” que faz circular.
Observações em campo e análises preliminares partilhadas com Matheus Pfrimer, professor e pesquisador da Universidade Federal de Goiás, sugerem que nos dias de hoje as milícias estão menos envolvidas em homicídios e segurança clandestina – práticas “envelhecidas” – e mais inclinadas a emularem as facções criminosas no tráfico nacional e internacional de narcóticos. Vejamos breves argumentos que sustentam essa suposição, organizados aqui em dois blocos: (1) o enfrentamento do Governo do Pará às milícias e às facções; (2) a especialização e divisão do trabalho do tráfico na Pan-Amazônia.
Em primeiro, dados oficiais atestam que a atual equipe de Governo vem alcançando resultados consistentes na oferta de segurança à população paraense por seis anos consecutivos, conseguindo elevar o Pará do ranking dos estados mais violentos do Brasil (2018) ao topo entre os que, no presente, mais reduziram a criminalidade, inclusive os crimes violentos letais intencionais e as mortes decorrentes de intervenção policial.
A ênfase na redução de homicídios, principal meta elencada pelos gestores do sistema de segurança pública, levou para a prisão mais de uma centena de milicianos; vários policiais, bombeiros militares e guardas municipais foram excluídos. O Estado foi claro: chacinas não serão toleradas e os executores serão punidos.
Ademais, a ampla oferta de gratificação complementar para jornadas operacionais extraordinárias que garantem renda extra lícita aos policiais militares, afastou-os do arriscado “bico” e aumentou expressivamente o policiamento ostensivo. Com efeito, a demanda de segurança privada clandestina encolheu e, por tabela, minguou o importante canal de recrutamento de milicianos.
Apesar de atingidas pelas ações do sistema de segurança pública, as milícias, nota-se, persistem, mas agora “economizando” violência e prestando proteção de modo mais restrito.
As facções também foram alcançadas. A forte retomada do controle do sistema penitenciário paraense pelo Estado e a prisão ou morte de lideranças provocou a marcante debandada de faccionados em maior quantidade para os morros do Rio de Janeiro. Em adição, cresce a apreensão de “toneladas” de narcóticos por unidades especializadas nos rios em embarcações, inclusive submarinos, mas também por guarnições do policiamento ordinário urbano.
A recente onda de extorsões a comerciantes e empresários promovida por criminosos faccionados parece um plausível sinal de que estão “sentindo os golpes” no esquema do tráfico.
A segunda linha de argumentação considera que as toneladas apreendidas – e a presumível maior quantidade que escapa da ação policial – são evidências da relevância do tráfico transnacional oriundo da Bolívia, Colômbia e Peru, que adentra o Brasil por rios e igarapés amazônicos. O risco mínimo de apreensão e a oferta abundante de mão-de-obra pronta para o recrutamento do mercado da droga favorecem a expansão.
Didaticamente, investigadores da Narcóticos explicam que a movimentação de enormes volumes demanda a melhor organização e divisão do trabalho em ao menos quatro grupos. O primeiro consiste dos “hermanos” fornecedores – os maiores produtores de cocaína do mundo – que vendem para quem quiser comprar, sem exclusividade. O segundo grupo corresponde aos atravessadores – “paramilitares estrangeiros”, alegam ribeirinhos – especializados no transporte fluvial em embarcações blindadas e fortemente armadas ou dissimuladas, até os portos no Amazonas e no Pará. O terceiro engloba o pessoal local responsável pela custódia escondida das cargas até serem distribuídas. O quarto e último grupo transporta a droga, por via terrestre, aquática ou aérea, para Sul, Sudeste e outras regiões do país, além da África e Europa.
Os policiais comentam que os cartéis produtores asseguram que ninguém é dono da rota Pan-Amazônica. Desse modo, servem-se dela tanto consórcios de investidores (empresários, políticos etc.) que visam a maior rentabilidade do mercado internacional – esse também é o caso, em boa medida, do Primeiro Comando da Capital – quanto os interessados em menores quantidades para o varejo regional, como o Comando Vermelho.
Ao que parece, esse arranjo proporciona às mílicias a oportunidade de explorar duas novas e intrincadas frentes: (1) a proteção dos carregamentos de drogas; (2) a apreensão dos carregamentos e apropriação total ou parcial da carga para revenda a terceiros. Ambas são atividades altamente rentáveis, sobretudo a segunda, e não necessariamente assinaladas por violência letal, logo, capazes de corromper as estruturas do Estado na surdina.
Corrobora esse entendimento a condenação pelo Tribunal Coletivo do Juízo Central Criminal de Santarém, em Portugal (15/07/2024), de um tenente da Polícia Militar do Pará e de outros dois paraenses, todos ligados ao PCC e envolvidos no esquema sofisticado de tráfico para a Europa de 320 quilos de cocaína misturada a polpa de açaí. A carga foi apreendida num contêiner que saiu do porto de Vila do Conde, em Barcarena, cidade próxima a Belém do Pará.
De igual modo, é o que sugere a prisão, na cidade paulista de Piraju, no último dia 20, de quatro policiais civis envolvidos num esquema de falsas operações contra o tráfico para apreensão, desvio e revenda dos entorpecentes. O esquema se espalha por cidades do interior paulista e do Paraná.
Afinal, milícias que se apresentavam – insinceras – como “protetoras da comunidade”, revelam-se grupos criminosos com práticas cada vez mais semelhantes às das facções do tráfico que diziam combater. O enfrentamento à sua expansão se mostra um dos maiores e mais complexos desafios da segurança pública em todo o Brasil, com nuances regionais que não reproduzem exatamente o que acontece no Rio de Janeiro, onde o fenômeno é mais patente e exasperado em grau fora da curva em relação aos demais estados brasileiros.