Profissão Polícia

Mesmos atores políticos na segurança, mesmas cenas trágicas

Repetem-se tragédias, pune-se pontualmente, e as relações sistêmicas entre instituições de segurança e sociedade continuam reproduzindo violências, servindo como pauta para a mídia sensacionalista

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Gilvan Gomes da Silva

Formado em Antropologia e em Sociologia, com mestrado e doutorado em Sociologia pela Universidade Nacional de Brasília. Membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública

Nas últimas semanas várias operações policiais resultaram em mortes e pautaram grandes veículos de informação, mobilizando diversos grupos da sociedade na tentativa de restabelecer as garantias fundamentais de direito. Assim, uso essas operações para reflexões acerca da “legitimidade” construída em parte da sociedade por tais resultados para tentar compreender os motivos de não haver mudanças substanciais, já que é uma constante na segurança pública.

Em maio de 2021, a Polícia Civil do Rio de Janeiro realizou uma operação em Jacarezinho que resultou na morte de um policial e de 27 civis. O secretário de Segurança elogiou a ação da polícia e informou que os 27 mortos eram traficantes. A ação envolveu cerca de 250 policiais com apoio de quatro veículos blindados e de dois helicópteros. Em novembro, após a morte de um policial, houve uma operação da Polícia Militar também no Rio de Janeiro e 0ito suspeitos morreram. Segundo a Secretaria de Segurança, cinco suspeitos mortos tinham anotações criminais. De acordo com registro de ocorrência na 72ª Delegacia de Polícia, não houve apreensão de armas no local. Todavia, a Polícia Militar informou que apreendeu duas pistolas e munições.

Ambos os casos têm similaridades: morte de policial seguida de grande quantidade de morte de suspeitos por policiais; é uma operação que envolveu um efetivo grande, com oficiais e praças; são ações de um certo grau de planejamento e a fundamentação da morte na resistência à ação policial é a comprovação do registro pregresso dos suspeitos, a chamada “passagem pela polícia”.

Todavia, várias dessas características não são recentes e também estão presentes em outras localidades. Apenas para pontuar com um exemplo extremo, em outubro de 1992, a intervenção da Polícia Militar de São Paulo na Casa de Detenção resultou na morte de 111 detentos. A operação, chefiada por um coronel, teve o respaldo do governador que, anos após, informou que não deu a ordem, mas, que se fosse consultado, teria autorizado, mesmo sabendo quais consequências haveria.

Apesar de estarrecedora, a técnica de vincular uma “justificativa” de “ter passagem” à morte de suspeito é utilizada nas ações cotidianas. Reportagem do Fantástico, apresentada em 28 de novembro  de 2021, revela uma abordagem policial militar em suspeitos num veículo. O desfecho é a morte de um suspeito. Em análise das imagens das câmeras que ficam acopladas nos uniformes policiais, verificou-se que se tratou de uma execução, que não houve reação. A primeira versão dos policiais é que eram suspeitos e que havia uma arma com o atingido. A Corregedoria da instituição analisa se a arma foi colocada por outros policiais após a abordagem. Novamente, o que é comum é que há uma grande quantidade de policiais com diferentes graduações e postos e a justificativa é a possível conduta criminosa.

Dos fatos, tanto das operações policiais de grande escala que resultaram em grande número de mortes quanto de ações policiais pontuais, as características se tornam presentes. Assim, não é somente caso de Corregedorias, pois estas são limitadas às análises “individuais”. O homicídio durante a abordagem policial pode ser culposo ou doloso, dependendo de uma série de fatores, como alegado em outros fatos semelhantes de confundir furadeiras e guarda-chuva com arma. Neste caso, grupos de especialistas analisam e julgam tais fatos. Assim como a possível conduta delituosa de colocar a arma para incriminar os suspeitos.

Entretanto, os delitos institucionalizados, quase orgânicos ao sistema de segurança pública, que influencia tanto os policiais que estão patrulhando, quanto os gestores que planejam as operações, assim como os políticos que orientam o planejamento e a implementação de políticas públicas não há uma prestação de contas à sociedade, mesmo que essa característica de operar pela “vingança/terror” e construir as ações a partir de possíveis fichas corridas fazem parte da conduta dos operadores de segurança pública.

Todavia, mesmo sendo uma prática institucionalizada, inclusive no discurso construído por alguns canais midiáticos, as medidas preventivas e repressivas estão apenas nas práticas individuais, assim, objeto apenas de apuração das Corregedorias e, portanto, sem mudanças institucionais. Não há mudanças, porque quem opera a construção da agenda política são os mesmos grupos com as mesmas convicções.

Os especialistas em segurança pública, os movimentos sociais, os representantes de associações de moradores atingidos, entre outros, descrevem quais variáveis devem ser consideradas para diminuir a violência institucionalizada em territórios vulnerabilizados. Todavia, os únicos espaços de comunicação que têm são a partir da apresentação de dados científicos para os pares ou em manifestações em espaços públicos mobilizando esforços para colocar em pauta na mídia com espaços reduzidos nos canais televisivos.

Os espaços políticos são reduzidos ou com pouca expressão decisória, como os Conselhos de Segurança Pública, tanto nas esferas municipais, quanto estaduais e federal, que apenas são consultivos, transformando-se, na prática, quase em ouvidorias. Assim, repetem-se tragédias, pune-se pontualmente, e as relações sistêmicas entre instituições de segurança e sociedade continuam reproduzindo violências e servindo de pauta de mídia sensacionalista.

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