Múltiplas Vozes 12/07/2023

Megachacinas policiais no Rio de Janeiro

O sistema de justiça vem falhando em sua tarefa de fiscalização do uso da força pelo Estado e garantindo impunidade aos autores de chacinas policiais, contribuindo assim para estimular a brutalidade policial

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Daniel Hirata

Coordenador do Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos da Universidade Federal Fluminense (GENI/UFF)

Carolina Grillo

Coordenador do Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos da Universidade Federal Fluminense (GENI/UFF)

Renato Dirk

Coordenador do Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos da Universidade Federal Fluminense (GENI/UFF)

Diogo Lyra

Coordenador do Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos da Universidade Federal Fluminense (GENI/UFF)

No Brasil, o termo “chacina” é adotado por pesquisadores para se referir a ocorrências com três ou mais mortes violentas intencionais. A expressão “chacina policial”, por sua vez, refere-se exclusivamente às ocorrências com três ou mais mortes decorrentes de ações policiais. Tais chacinas são a face mais trágica da letalidade policial no Rio de Janeiro, estado em que grande parte dos homicídios são praticados por policiais em serviço. Este fenômeno vem sendo denominado “estatização das mortes” e ocorre de forma concentrada quando observamos a frequência de chacinas policiais.

Importante estudo conduzido por Ignácio Cano[1] aponta que, quando mais de 10% do total dos homicídios são cometidos pelas forças policiais, existem claros indícios de abuso do uso da força oficial. Ante uma média nacional de 12,9% em 2021, as polícias fluminenses foram responsáveis por mais de 30% da letalidade violenta na RMRJ nos últimos quatro anos, ao passo que eram responsáveis por 9,5% em 2013. Como não chamar esse processo de estatização das mortes? No gráfico abaixo (Gráfico 1), pode-se observar o processo de estatização das mortes expresso na participação da letalidade policial na letalidade violenta, assim como a frequência de chacinas policiais varia de maneira bastante próxima a este processo.

 

Gráfico 1: Participação da letalidade policial na letalidade violenta e quantidade de chacinas policiais (Porcentagem e números absolutos, 2007-2022, Região Metropolitana do Rio de Janeiro)

 

 

Fonte: ISP/RJ e GENI/UFF

Nesses últimos anos também emerge um fenômeno novo que denominamos megachacinas policiais. Para compreender as características específicas das chacinas nos últimos anos, criamos subgrupos segundo o número de mortos: de 3-4 mortos, de 5-7 mortos e 8 ou mais mortos, as doravante chamadas megachacinas.  Em seguida, procuramos compreender o peso percentual de cada um desses grupos nos períodos demarcados pelas maiores variações nas mortes por intervenção de agentes de estado, demarcadas claramente no gráfico acima (Gráfico 1). É possível observar os resultados no gráfico abaixo (Gráfico 2).

 

Gráfico 2: Distribuição das chacinas policiais segundo a quantidade de mortos

(Porcentagem, 2007-2022, Região Metropolitana do Rio de Janeiro)

Fonte: GENI/UFF

Como é possível observar, o período de 2020-2022 é aquele no qual a porcentagem de megachacinas policiais é a mais elevada, chegando a 23,4% do total. Em períodos anteriores, a participação das megachacinas no total de chacinas policiais alcançara no máximo 12,9% no período de 2007-2009 e, entre 2014 e 2019, chegara a ser quase cinco vezes menor do que entre 2020-2022, o que apontaria uma concentração de megachacinas entre 2020-2022.

De fato, dentre todas as 629 chacinas que ocorreram entre 2007-2022, apenas 27 delas (4,2%) apresentaram 8 ou mais mortos, podendo ser caracterizadas como megachacinas policiais. Um terço dessas 27 megachacinas (9) se concentra no período de 2020-2022, sendo que dessas, encontramos a mais letal (Jacarezinho, com 27 mortos civis, em maio de 2021), a segunda mais letal (Penha, com 23 mortos, em maio de 2022) e a quarta mais letal (Alemão, com 16 mortos, em julho de 2022). Podemos então dizer que o processo de estatização das mortes, no qual a letalidade policial se torna cada vez mais significativa para o conjunto total das mortes, se encontrou nos últimos anos com a realidade das megachacinas policiais, que, além de escandalosamente letais, tornaram-se cada vez mais recorrentes.

Por fim, dentre as 27 megachacinas analisadas, pudemos observar um padrão de impunidade semelhante ao processamento legal dos casos ordinários de letalidade policial, descritos em estudos como o de Misse et al. [2], Zaccone[3], Araújo[4], Farias[5] e, mais recentemente, do Fórum Justiça [6]. Mesmo com toda a visibilidade pública que estes eventos adquirem a análise do fluxo de processamento dos casos, cujos resultados podem ser observados abaixo (Gráfico 3), é absolutamente clara a falta de responsabilização nesses casos.

 

Gráfico 3: Situação do processamento legal das megachacinas policiais

(2007-2022, Região Metropolitana do Rio de Janeiro)

Fonte: GENI/UFF

Como pode ser visto, dois processos foram encerrados até o presente, sendo eles arquivados. Apenas dois casos foram denunciados pelo Ministério Público à Justiça e nenhum deles concluiu a fase de instrução e julgamento, isto é, nenhum deles chegou a ser pronunciado ou impronunciado no Tribunal do Júri e, portanto, não foi ao julgamento decisivo pelos jurados. Há dois casos que estão sendo investigados por meio de um Procedimento Investigatório Criminal (PIC) instaurado pelo próprio MP – logo, distinto do inquérito policial, que é instaurado pela Autoridade Policial – sendo que ambos se encontram em processamento no MP há cerca de um ano. Outros nove casos ainda se encontram em fase de Inquérito Policial e o tempo médio de processamento desses casos, em particular, é de dez anos e quatro meses, forte indicador de que parte deles se encontra estagnado no “pingue-pongue” entre a PC e o MP[7] ou perdidos em delegacias. Cabe destacar que um número expressivo de casos (12) não foi localizado, o que constitui um indicador da falta de transparência do Sistema de Justiça Criminal.

A alta frequência de megachacinas policiais nos últimos anos indica uma característica recente bastante específica da letalidade policial no Rio de Janeiro, que se perpetua e se agrava com a condescendência dos poderes públicos estaduais. De um lado, destacamos a anuência por parte do Governo do Estado, que incentiva a rotinização e institucionalização da violência de Estado sob a forma do fenômeno que designamos aqui como estatização das mortes. Por outro lado, cumpre também destacar que o sistema de justiça vem falhando em sua tarefa de fiscalização do uso da força pelo Estado e garantindo impunidade aos autores de chacinas policiais, contribuindo assim para estimular a brutalidade policial. Em seu conjunto, uma situação exemplar do abuso do uso da força e de como as forças policiais não devem agir em regimes democráticos.

 

[1] Cano, I. 1997. Letalidade da ação policial no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: ISER.

[2] Misse et al. (orgs.) 2010. Inquérito Policial no Brasil: Uma pesquisa empírica. Rio de Janeiro: Booklink.

[3] Zaccone, O. 2015. Indignos de vida: a forma jurídica da política de extermínio de inimigos na cidade do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Revan.

[4] Araújo, F. 2014. Das técnicas de fazer desaparecer corpos. Rio de Janeiro: Lamparina.

[5] Farias, J. 2014. Governo de Mortes: Uma etnografia da gestão de populações de favelas no Rio de Janeiro. unpublished thesis (phd in sociology). Federal University of Rio de Janeiro.

[6] Forum Justiça. 2022. Letalidade Policial no Rio de Janeiro e Respostas do Ministério Público. Relatório de Pesquisa. Disponível em: https://forumjustica.com.br/conhecimento/letalidade-policial-no-rio-de-janeiro-e-respostas-do-ministerio-publico/

[7] Misse et al. (orgs.) 2010. Inquérito Policial no Brasil: Uma pesquisa empírica. Rio de Janeiro: Booklink.

 

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