Múltiplas Vozes

Medindo a participação da arma do crime no mercado legal

Os detalhes da conexão entre a arma comprada legalmente e a arma do crime foram recompostos pelo relatório “Desvio Fatal: Vazamento de armas do mercado legal para o ilegal no estado de São Paulol”, do Instituto Sou da Paz

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Bruno Langeani

Gerente do Instituto Sou da Paz, membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública e mestre em Políticas Públicas pela Universidade de York. É autor do livro: “Arma de fogo no Brasil: gatilho da violência” (editora Telha)

Caso alguém decida fazer um experimento e entrar numa dessas salas de armas mantidas por um escrivão de delegacia local, ou de uma Seccional, apagar a luz e pegar aleatoriamente uma arma apreendida, há uma chance em quatro de que pegue um revólver calibre .38. No estado de São Paulo, essa arma figura há décadas como a mais apreendida com criminosos. Foram mais de 24 mil apreendidas desde 2011, mais de 90% de fabricação nacional.

O caminho típico que uma arma percorre quando migra para o mercado ilegal e começa seu percurso criminal até ser  apreendida pela polícia é parecido com o do revólver .38 prefixo TJ66***. Esse revólver foi fabricado pela Forjas Taurus em 2000 em São Leopoldo (RS). Nas mãos de uma empresa de segurança privada de Sorocaba (SP), caiu na ilegalidade junto com outras 23 armas em março de 2020. Aproximadamente 5 meses depois, o TJ66 foi uma das poucas a serem recuperadas pela polícia, numa tentativa de feminicídio na mesma cidade.

Os detalhes da conexão entre a arma comprada legalmente e a arma do crime foi recomposto do relatório Desvio Fatal: Vazamento de armas do mercado legal para o ilegal no estado de São Paulo, do Instituto Sou da Paz. O trabalho analisou mais de 23 mil Boletins de Ocorrência envolvendo furtos, roubos e desvios de armas de fogo no Estado de São Paulo.

A pesquisa mostra uma forte correspondência entre os perfis de fabricantes quando elencadas as 5 armas vilãs do crime no Estado (revólveres .38, .32 e .22 e pistolas .40 e .380). Colocadas frente a frente, a arma do proprietário legal e a apreendida no crime, como se diante de um espelho, que reproduz em proporções próximas, e quase sempre na mesma ordem, as fabricantes em um grupo e no outro. Veja o exemplo abaixo: neste grupo das pistolas .380 as da marca Taurus possuem 75% entre as desviadas e 72% entre as apreendidas. Em segundo lugar, a importada Glock aparece com 10% entre as desviadas e 8% entre as apreendidas.

Quando olhamos para os grupos com número de série (normalmente ocultado para prejudicar a análise de origem) derrubou-se o mito de que as armas vêm de fora e viajam longas distâncias. Armas desviadas em uma cidade geralmente provocarão dano nesse mesmo local. Em 45% desta amostra, o desvio ocorreu na mesma cidade da apreensão.

O relatório consegue apontar as circunstâncias e perfis de onde esses crimes estão ocorrendo para que ações preventivas possam ser tomadas pelos órgãos competentes. O local com mais BOs de desvio de armas é a residência, contrariando o discurso de que a arma teria um efeito de afastar o criminoso do lar. Como a maior parte dos desvios ocorre em contexto de furto, o criminoso é atraído por esse objeto de valor no mercado criminal e elimina qualquer risco de reação ao buscar o local desabitado.

Apesar de as residências terem mais ocorrências de desvios, são órgãos públicos, empresas de segurança privadas, agências bancárias e residências de CACs (colecionadores, atiradores e caçadores) que concentram o maior número de armas levadas por ocorrência. No caso das armas de órgãos públicos (delegacias e fóruns da justiça) e CACs, o prejuízo na segurança pública é maior tanto pela quantidade de armas, quanto por envolverem armas de calibre restrito. O Fantástico da TV Globo mostrou um caso que integra a pesquisa. Ele envolve um colecionador que teve a casa furtada quando em viagem e perdeu 42 armas, incluindo 12 fuzis e uma metralhadora .50 . Dois dos fuzis foram novamente apreendidos pela polícia, em ocorrências de roubo a banco.

Esse episódio revela mais uma característica que emerge da análise. Criminosos preferem atacar em meses de férias (como janeiro ou dezembro) ou em feriados prolongados. Isso aumenta a hipótese de atacarem locais vazios ou com menos vigilância, o que, por consequência, aumenta a chance de impunidade.

Ainda que indique estratégias bem concretas para as polícias estaduais, Polícia Federal, Exército e Justiça sobre como contribuir para reduzir esses desvios, fica muito evidente que aumentar exponencialmente a base de armas do mercado legal e liberar armas mais potentes vai na contramão dos diagnósticos. Mesmo que os casos de desvio tenham apresentado queda nos últimos anos, especialmente 2020, que teve uma redução expressiva de crimes patrimoniais com as pessoas em isolamento por conta da pandemia, o esperado é que, com a volta dos roubos e furtos (em crescimento nos Estados) mais residências, lojas e empresas com armas signifiquem mais armas escoando para as mãos do crime. Uma realidade do “novo normal” que já aparece tanto nesta pesquisa quanto nas páginas policiais é o de roubos de carros que transportam armas novas para lojas ou civis. Sem escolta e blindagem, mas muitas vezes com informação privilegiada, são interceptados por assaltantes e de uma só vez fuzis e pistolas novos passam direto da fábrica para a mão do crime, como mostrou o UOL.

Na perspectiva de aumento de desvios e com armas mais poderosas sendo levadas, é possível que vejamos o fim do domínio do três-oitão na mão do crime, e infelizmente isso não será uma notícia a ser comemorada.

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