Múltiplas Vozes 27/03/2024

Marielle: o fio do novelo

Restam algumas perguntas, como a que indaga sobre o paradeiro do porteiro do condomínio Vivendas da Barra, depois que ele declarou que "seu Jair" autorizou a entrada de Élcio Queiroz no dia do crime

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Sonia Fleury

Doutora em Ciência política; pesquisadora sênior na FIOCRUZ, onde coordena o Dicionário de Favelas Marielle Franco wikifavelas.com.br

Os últimos lances na investigação, com duração superior a seis anos, desde o assassinato de Marielle e Anderson, já foram celebrados como a aproximação do seu fim, com o esclarecimento dos mandantes e da motivação do crime bárbaro. Esse clima se instalou a partir da convocação de uma coletiva pelo ministro Ricardo Lewandowski para anunciar que a delação premiada do assassino confesso Ronnie Lessa havia sido homologada pelo Supremo Tribunal Federal. Para a família, as esperanças foram renovadas, como expressou a ministra da Igualdade Racial, Anielle Franco; para a viúva, a vereadora Mônica Benício, a coletiva convocada pelo ministro causou frustração e dor, enquanto o governador do Rio de Janeiro, Claudio Castro, reagiu dizendo que até então tudo o que se sabia seriam fofocas. Aliás, sua postura variou ao longo do tempo, entre a necessidade de manter uma aparente neutralidade, como em 2021, quando declarou que cobrava uma solução mas não garantia um desfecho da investigação, até a postura mais recente. Seu cinismo, ao afirmar que tudo não passava de fofoca, deixou claro, definitivamente, que não buscava a neutralidade. Em ambos os casos, apresentou posturas não condizentes com a autoridade máxima do Estado onde o crime foi executado e investigado, até recentemente, pela Polícia Civil do seu governo.

Ao longo de mais de seis anos de investigação, foram detidos o ex-policial e traficante de armas Ronnie Lessa e o ex-PM Élcio Queiroz. Ambos são réus confessos, com participação direta no assassinato. O bombeiro Maxwell Simões, também envolvido, igualmente foi alvo de detenção. Todos eram vinculados ao Escritório do Crime e à milícia. Nenhum deles até o momento foi julgado e condenado.

O processo de investigação na Polícia Civil, no entanto, é digno de uma investigação sobre o percurso rocambolesco, com a participação e posterior afastamento de uma promotora bolsonarista, a substituição por quatro vezes do delegado responsável pela investigação, a tentativa de delação premiada envolvendo homicídios e ligação com políticos da viúva do chefe do Escritório do Crime, o ex-PM Adriano Nóbrega, executado na Bahia. Ele foi agraciado com a medalha Tiradentes por Flavio Bolsonaro e considerado um herói por Jair Bolsonaro.

Em outubro de 2023 o inquérito foi enviado ao Superior Tribunal de Justiça e, posteriormente, para o STF, após o surgimento de suspeitas do envolvimento no crime de um membro do clã Brazão, com imunidade. O nome de Domingos Brazão, ex-deputado estadual por cinco mandatos consecutivos e atual conselheiro do Tribunal de Contas do Rio de Janeiro, foi mencionado como mandante do crime. Trata-se do líder de um poderoso grupo político da zona oeste, berço das milícias, que tem vasta folha corrida, com acusações de assassinato, improbidade administrativa, fraude, envolvimento na máfia dos combustíveis, com as milícias e na compra de votos.

Após a homologação da delação premiada de Ronnie Lessa, seus advogados de defesa abandonaram o caso, em clara manifestação de contrariedade com o rumo que as investigações tomaram. Também chama atenção o acesso da imprensa a informações confidenciais da delação, divulgadas pelo jornal O Globo. Além da informação sobre os mandantes do crime, envolvendo também Chiquinho Brasão, deputado federal, Ronnie Lessa teria afirmado que a motivação do crime se deveu ao fato de a vereadora ter entrado em rota de colisão com os interesses da milícia em relação à expansão de terrenos sob seu domínio na zona oeste. O investigado afirma ter tido pelo menos quatro encontros com os mandantes depois do crime, preocupado com a enorme repercussão do assassinato de Marielle. Ele teria sido tranquilizado por eles, sendo-lhe dito que “a investigação não ia dar em nada”.

O que chama atenção é a certeza de impunidade dos mandantes do crime. Eles pareciam seguros que não ia dar em nada a investigação da morte de uma mulher preta favelada, mesmo sendo a quinta vereadora mais votada e tendo se tornado a expressão de uma nova forma de fazer política. Ele chegava junto das populações de favelas, das mulheres negras, dos movimentos LGBTQIA+, dentre outros, encantando, com sua coragem, jovens de toda a cidade, que viam na sua atuação uma esperança de mudança política. Mais além da sua atuação junto ao deputado Marcelo Freixo na CPI das Milícias ou dos interesses das milícias em sua expansão territorial, o assassinato de Marielle ceifou sua potência política e a esperança de que seria possível uma nova política no Rio de Janeiro. Sua morte, no entanto, tornou-a um símbolo internacional das lutas identitárias e urbanas.

Os avanços na investigação, com a denúncia dos nomes dos mandantes e da motivação do crime, sinalizam, para alguns, que, em breve, teremos o possível término da investigação, enquanto, para muitos, ainda restam inúmeras questões a ser esclarecidas, sendo o assassinato a ponta do fio do novelo que deveria desvendar, entre outras, as seguintes perguntas:

– O que aconteceu com o porteiro do condomínio onde Bolsonaro e Ronnie Lessa eram vizinhos, depois que ele declarou que o presidente autorizou a entrada de Élcio Queiroz no dia do crime?

– Existe relação da morte de Adriano Nóbrega, considerada queima de arquivos, com o assassinato de Marielle e Anderson, já que ele e Ronnie Lessa atuaram juntos em vários crimes, segundo depoimento de Orlando Curicica sobre o Escritório do Crime?

– Quais as relações do Escritório do Crime e das milícias com as polícias, o Executivo, o Legislativo e o Judiciário?

– Será que o assassinato de Marielle e Anderson poderá ser o fio do novelo que poderia desvendar, como fez o mapa do domínio das milícias e tráfico nos território do Rio de Janeiro, um novo mapa deste domínio na política?

Quando finalizei a elaboração da primeira versão deste artigo, em 23 de Março, não haviam sido presos os mandantes, o que ocorreu às 6 horas da manhã do seguinte. Além dos nomes de Domingos e Chiquinho Brazão, que já tinham circulado como mandantes, a grande surpresa foi a prisão do ex-chefe da Polícia Civil do Rio de Janeiro, Rivaldo Barbosa. Veio à tona toda uma trama macabra, na qual o chefe da polícia, que supostamente apoiava a família na busca de solução do caso, tinha sido cúmplice de toda a trama. Rivaldo foi nomeado por Braga Netto, interventor no Rio de Janeiro à época, um dia antes do assassinato, passando a atuar para impedir a solução do crime. A divulgação do relatório do inquérito e sua divulgação na mídia mostram um submundo de vermes envolvidos nos assassinatos, milicianos, matadores, políticos, policiais. E sabe-se lá quem ainda não apareceu.

Embora o Ministro Lewandowski tenha afirmado que o caso está encerrado, com o esclarecimento dos mandantes e da motivação do crime, a alegação que se tratava de um enfrentamento de Marielle com os interesses dos Brazão em relação à legalização de terrenos invadidos na zona oeste soa pouco crível. Essa não era a principal área de atuação da vereadora e os Brazão, como ficou demonstrado, tinham força suficiente para aprovar projetos na Câmara, mesmo com a oposição da bancada minoritária de vereadores do PSOL.

Por essa razão e pelo panorama que se descortinou, de total contaminação dos poderes públicos no Rio de Janeiro devido a suas ligações com a criminalidade, fica claro que se trata apenas da ponta do fio do novelo. A sociedade precisa exigir que novas investigações possam desenrolar até o fim esse escabroso conluio, que certamente envolverá outros atores, ainda não revelados.

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