Daniel Hirata
Professor de sociologia e coordenador do Grupo de Estudos dos Novos Legalismos da Universidade Federal Fluminense
Maria Isabel Couto
Doutora e mestre em sociologia pelo IESP/UERJ. Atualmente é gestora de dados do Fogo Cruzado
A história do Rio de Janeiro é marcada por aquela dos grupos criminais, seus ciclos de paz e enfrentamento e suas intrigas de bastidores. As disputas pelo controle territorial armado tornaram-se variáveis incontornáveis não só para a área de segurança pública, mas também para outras políticas públicas, influenciando desde o transporte e habitação à educação e cultura. Apesar disso, existem poucos estudos baseados em dados, estatais ou da sociedade civil, capazes de avançar no entendimento de como esses grupos se expandem/retraem e disputam o espaço urbano.
Diante disso, o Instituto Fogo Cruzado e o Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos da Universidade Federal Fluminense (GENI/UFF) decidiram liderar um esforço coletivo que permitiu apresentar o Mapa Histórico dos Grupos Armados do Rio de Janeiro. Ao todo foram analisadas 689.933 mil denúncias anônimas sobre tráfico de drogas e milícias entre 2006 e 2021, que permitiram traçar a evolução histórica do controle territorial e populacional de facções e milícias, sobre mais de 13.308 sub-bairros, favelas e conjuntos habitacionais nos quais moram os 12.164.017 habitantes da região metropolitana do Rio de Janeiro.
Os resultados dessa pesquisa permitem corroborar hipóteses já levantadas por pesquisas qualitativas anteriores, bem como aprofundar linhas de interpretação e questionar posicionamentos de autoridades públicas. Trataremos aqui daquela que acreditamos ser a mais importante e emergencial conclusão possibilitada por esta pesquisa: as milícias se tornaram claramente a principal ameaça à segurança pública no Grande Rio e sua expansão é facilitada pela ineficácia dos esforços de combate ao crime organizado dos últimos quarenta anos.
Entre o primeiro e o último triênio da série histórica que compõem o Mapa dos Grupos Armados do Rio de Janeiro, as milícias apresentaram um crescimento territorial de 387,3% nas áreas sob seu controle (de 52,60Km² para 256,28Km²) e populacional de 185,5% (de 600.813hab para 1.715.396hab). O aumento explosivo, em ritmo mais acelerado que os demais grupos, garantiu que as milícias passassem de 23,7% para 49,9% da área total controlada por grupos armados e de 22,5% para 38,8% da população. Em outras palavras, as milícias se tornaram o grupo armado mais expressivo em termos de quilômetros quadrados sob seu controle. Do ponto de vista populacional, ainda não apresentam uma hegemonia clara, mas isto parece uma questão de (pouco) tempo, mantida a velocidade com que incorpora grandes contingentes de habitantes sob seu domínio.
É possível perceber, ainda, que essa expansão acentuada não ocorreu através da incorporação de áreas controladas por outros grupos armados. Muito pelo contrário. Considerados os últimos três triênios – momento de expansão mais acelerada das milícias –, o Terceiro Comando Puro incorporou aos seus domínios 18,45Km² e o Comando Vermelho e os Amigos Dos Amigos diminuíram os seus espaços de controle em 13,36km². Isso significa que, mesmo se todas as áreas perdidas pela ADA e o CV tivessem sido conquistadas pelas milícias – e poucas evidências apoiariam essa suposição -, elas representariam apenas 9,7% do aumento territorial observado. Portanto, no mínimo 90,3% desse crescimento se deu em novas áreas, isto é, onde anteriormente não havia controle territorial armado. Essa mesma lógica se aplica de forma ainda mais acentuada para as sub-regiões nas quais as milícias mais cresceram: a capital, particularmente na zona oeste, e a Baixada Fluminense.
Se essa hipótese estiver realmente correta, a justificativa que acompanhou as milícias desde as suas origens cai por terra. As milícias não crescem no enfrentamento das facções do tráfico de drogas, mas sim ampliando o controle territorial armado sobre novas áreas. Seria mais correto afirmar que as milícias são o principal motor propulsor do controle territorial armado, sendo essa vetorização do controle territorial por meio da expansão das milícias responsável por uma mudança de conjunto no fenômeno do controle territorial armado.
Por fim, gostaríamos de destacar que o crescimento territorial das milícias não se deu de forma uniforme e contínua. Nesse sentido, se destacam 2 importantes momentos. O triênio de 2008-2010 marca a interrupção de uma tendência de crescimento das milícias e coincide com o início e os desdobramentos da Comissão Parlamentar de Inquérito conduzida na Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (ALERJ) iniciada no ano de 2008. Nesse momento, segundo consta em seu relatório final (ALERJ, 2008), a CPI indiciou 226 suspeitos de integrarem esses grupos criminais armados, dentre eles participantes-chave de esquemas altamente lucrativos, como a operação do transporte clandestino, e também agentes públicos que ofereciam sustentação para tais negócios. Após a CPI, as milícias chegam a perder quase 20% da cobertura territorial sob seu domínio no Grande Rio, sendo esta a experiência de maior efetividade conhecida para o enfrentamento deste problema.
A partir de 2017, no entanto, as milícias voltaram a crescer em ritmo acelerado. Esse momento é concomitante com uma crise da gestão pública da segurança no Rio de Janeiro. Os reflexos da crise fiscal e econômica, iniciada em 2014, se fez sentir na gestão da segurança pública e foram utilizados como justificativa para a intervenção federal na segurança pública, defesa civil e administração penitenciária do Estado do Rio de Janeiro, colocando fim ao grupo, representado por José Mariano Beltrame e seu sucessor, Roberto Sá, que durante 11 anos liderou o projeto de segurança pública à frente da Secretaria de Estado de Segurança Pública (SESEG) do Governo do Estado do Rio de Janeiro. Ao final da intervenção, os bilhões de reais investidos na segurança fluminense pelo governo federal se traduziram em uma explosão da violência armada e uma redução bem pequena nas ocorrências de crimes, mais significativa apenas na queda de incidência de roubo de cargas, sem impacto no enfrentamento dos grupos armados.
A percepção de crise na gestão da segurança se manteve ao longo de todo o processo eleitoral de 2018, com o agravante de que a intervenção aprofundou ainda mais as críticas que existiam à construção de um projeto de segurança centralizado na SESEG. Logo nos primeiros meses de seu mandato, em fevereiro de 2019, o governador Wilson Witzel cumpriu sua promessa de campanha de extinguir a secretaria de segurança pública (SESEG). Na prática isso deu às polícias civil e militar autonomia para agir de maneira independente, sem se subordinar a diretrizes, protocolos e metas estabelecidas por políticas de Estado e o controle político eleito. Uma vez que é amplamente conhecida e comprovada a participação de agentes públicos e, principalmente, de policiais nas milícias, não surpreende que o processo de enfraquecimento da SESEG e concomitante autonomização das polícias coincida com o impressionante crescimento das milícias evidenciado a partir do triênio 2017-2019. Com as polícias atuando a salvo de controles democráticos e de qualquer necessidade de prestação de contas à sociedade, a extensão territorial sob o controle de grupos armados, em particular dos grupos milicianos, cresceu vertiginosamente.
Nesta rápida passada sobre alguns dos resultados do mapa histórico dos grupos armados do Rio de Janeiro, procuramos apontar de que maneira, em quais lugares e períodos ocorreu a expansão das milícias, assim como indicar algumas das atuações que favoreceram ou não o controle territorial desses grupos armados. Mas o trabalho de entendimento da atuação desses grupos ainda tende a se desdobrar em muitas outras questões, a serem exploradas em detalhes nos próximos anos, dado o impacto multifacetado deste que é um dos principais problemas públicos do Rio de Janeiro.
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