Mais do mesmo? Sindicato do Crime, “ataques” no Rio Grande do Norte e violações no sistema prisional
Os “ataques” podem também ser entendidos como um grito desesperado e marcado pelo ódio contra um Estado violador de direitos dos quais deveria ser guardião. Usando a violência, injustificável e paradoxal, o SDC demanda que a Lei de Execução Penal (LEP) seja minimante cumprida no RN
Juliana Melo
Doutora em Antropologia, pesquisadora do sistema prisional e professora da Universidade Federal do Rio Grande do Norte
Os recentes “ataques” no Rio Grande do Norte, iniciados no dia 13/03/2023 e ainda em vigor, têm uma continuidade no tempo. De modo geral, usando a linguagem da violência, estão vinculados às denúncias de graves violações de direitos humanos que marcam o sistema prisional potiguar e não são dignas de reconhecimento pelo poder público. Vivenciamos pelos menos três grandes desses episódios semelhantes desde 2016. E nesse ínterim tivemos um Massacre na Prisão Estadual de Alcaçuz, que levou à morte de 27 pessoas oficialmente reconhecidas e a uma lista de desaparecidos ainda inconclusa.
Os atuais “ataques” se diferenciam dos anteriores em certa medida, porém. Demonstram uma força maior do Sindicato do Crime (SDC), facção criminosa que domina as prisões e as “quebradas” do Rio Grande do Norte desde 2013 e sua capilaridade – nunca antes envolveram tantos municípios. Indica ainda, e isso precisa ser melhor investigado, uma união tácita e pontual com o PCC – Primeiro Comando da Capital, em prol de demandas por melhorias no sistema prisional. Esse “acordo”, ainda que pontual, parecia muito improvável até recentemente. Por outro lado, embora não se possa comprovar a autoria desses “ataques”, alguns são realizados em suas próprias comunidades (com queimas de mercadinhos, casas e farmácias públicas, etc.), o que indicaria uma quebra de conduta em relação ao seu próprio Estatuto. Ademais, como mostram dados das audiências de custódia ocorridas nos últimos dias, alguns autores desses atos são muito jovens e recém-inseridos no crime. Seduzidos pelas redes criminosas e desesperançados com políticas sociais, centenas deles foram/estão sendo presos e vão engrossar o coro prisional, já marcado pela superlotação.
As ações governamentais, por sua vez, acionaram as mesmas estratégias anteriores e não me cabe julgá-las. No entanto, eu as vejo como paliativas e não resolutivas a médio e longo prazo. Como de costume, são realizadas muitas apreensões e transferências de “lideranças” para outros presídios, preferencialmente federais. Chama-se a Força Nacional, que permanece no estado alguns meses e controla emergencialmente a situação. Apela-se ainda à Intervenção nos presídios, o que costuma aumentar o estado de exceção. Visitas familiares são suspensas, o contato com advogados é restringido e os poucos projetos de reinserção social existentes (remição de pena pela leitura e pelo trabalho, por exemplo) são cortados. Com a situação nas ruas contida, esse estado de coisas cai em esquecimento e apenas os presos o vivenciam.
Não há muito ineditismo nessas dinâmicas. Cabe-me, porém, convidar para irmos além delas. Se quisermos romper esses ciclos precisamos refletir mais seriamente sobre as consequências de ações e omissões que perduram no tempo e que mostram a continuidade de um regime de gestão prisional no RN marcado pela prática sistemática da tortura, frequentemente denunciada por familiares por meios legais e pacíficos (passeatas, cultos, busca de órgãos públicos fiscalizadores, etc.) como acompanho desde 2017. Agências oficiais, como o Mecanismo Nacional de Combate à Tortura (MNCT), também reiteram essas vozes[1].
Para compreender esse estado de coisas, é importante retroceder ainda ao contexto de consolidação do crime organizado no Rio Grande do Norte, sobretudo depois de 2013, com a consolidação do SDC. Implica ainda voltar a 2017 e ao já mencionado Massacre de Alcaçuz, evento que alterou radicalmente as dinâmicas criminais na cidade e nas prisões. Esse momento marca o auge da rivalidade entre o Sindicato do Crime e o PCC e de uma “guerra” que se estende para as ruas, alterando as dinâmicas territoriais. Tivemos, por exemplo, tomadas de bairros por facções rivais e o deslocamento do PCC para o interior do Estado (especialmente na região de Mossoró). Os números de homicídios cresceram assustadoramente após o Massacre em 2017 e 2018, incluindo muitas mulheres. Desde então a rivalidade entre PCC e SDC foi decretada como norma e permaneceu assim até os últimos “ataques”.
Assim como agora, o poder público reagiu com prisões de lideranças e membros das facções; transferências para os presídios federais; apreensão de armas, drogas e recursos, o que desestabilizou o crime organizado em certa medida. No âmbito estrutural o estado investiu em uma reforma na prisão de Alcaçuz, a maior do estado, de forma a dificultar a fuga de presos, que era recorrente, assim como a entrada de drogas, celulares, etc.. Também recebeu muitos recursos federais para a compra de equipamentos de segurança e o quadro de policiais penais foi ampliado. No âmbito prisional, tivemos uma Intervenção que alterou as prisões em termos arquitetônicos, tornando-as ainda mais invioláveis às fugas e rebeliões, por exemplo.
Em relação aos presos, foi adotado um conjunto de medidas de controle ainda mais severas e cruéis. Os egressos e os familiares, aliás, relatam um regime de terror marcado pela prática de tortura sistemática, física e psicológica, com: espancamentos; sufocamentos; choques elétricos; sujeição a spray de pimenta. Contam de presos obrigados a beber a própria urina; a tomar banho com água sanitária; a abraçar pessoas tuberculosas; a compartilhar uma única escova de dente ou lâmina de barbear entre 40 pessoas, etc. Ao quadro somam-se situações de privações de água, de remédios, de bens de higiene enviados pelos familiares e não entregues. A situação alimentar, causada pelo fato de a comida ser insuficiente e estragada, é uma questão sempre em foco. Além disso, houve a supressão de visitas íntimas e proibição de entrada de qualquer alimento trazido pelas famílias, demandas reiteradas nos “ataques” atuais. As possibilidades de acesso a empregos e formas de remição de pena pela leitura, pelo trabalho, etc. também foram ainda mais limitadas. Atualmente, aliás, temos bons projetos nesse sentido, mas precisam sair do papel e ser implementados de forma eficaz e contundente e isso, igualmente, está sendo requerido pelo SDC atualmente.
De modo geral, todos esses aspectos constituem um verdadeiro barril de pólvora e os “ataques” envolvem todas essas questões. Indicam uma situação limite e insustentável e, diante dela, os presos e as pessoas vinculados ao SDC — que não podem ser reduzidos à condição de massa de manobra — acionam a linguagem da violência para comunicar esse estado de coisas inconstitucional. Assim, a violência é uma mensagem que ecoa, chama a atenção e parece impor-se como a única linguagem possível, sendo usada tanto pelo crime como pelo Estado.
Aliás, existem outras versões sobre os últimos “ataques”. Para alguns, seria um movimento para desestruturar o governo local, estimulado por interesses políticos contrários. Alguns apontam para a expansão dos grupos milicianos e o aumento de assassinatos nas periferias nos últimos seis meses. Para outros, como os agentes de segurança pública e do Ministério Público, são apenas pedidos de “regalias” e não envolvem a questão da dignidade humana – como entendo. Há ainda uma versão que diz que são resultado de apreensões de armas, drogas e recursos e transferências de presos – o que tem acontecido desde 2017 com maior intensidade. Entendo que essas explicações, se tomadas separadamente, são reducionistas e apenas cobrem com um véu a complexidade da situação atual.
Sem querer romantizar as facções criminosas e ao mesmo tempo me solidarizando com a sociedade potiguar, entendo que podem também ser entendidos como um grito desesperado e marcado pelo ódio, ódio contra um Estado violador de direitos dos quais deveria ser guardião. Usando violência injustificável, paradoxal e contraditoriamente, o SDC demanda que a Lei de Execução Penal (LEP) seja minimamente cumprida no RN e esse pedido não é novo e menos importante. Precisamos ouvi-lo minimamente se quisermos interromper essas espirais de violência que perduram no tempo e perdurarão caso continuemos insistindo apenas nas mesmas soluções.
Trata-se igualmente de um grito trágico. Afinal, evidencia que a violência é a única forma dessas sucessivas denúncias serem ouvidas de forma mais ampla, ainda que por um breve período de tempo e, muitas vezes, desvirtuadas como “regalias”, por exemplo. Os “ataques”, inclusive, são um “tiro no pé” do próprio SDC, dos presos e seus familiares. Acredito que eles próprios, mesmo que tentem demonstrar a “vitalidade do combate”, sabem que serão sufocados em um tempo relativamente curto a partir de agora, tal como aconteceu nas outras vezes (mas não definitivamente). Também acredito que haverá a intensificação de um modelo de gestão prisional de “segurança máxima” e que as violações de direitos humanos irão se intensificar se não houver um monitoramento rigoroso das práticas de tortura por órgãos externos ao RN. Igualmente suponho que os assassinatos nas periferias tenderão a se intensificar nos próximos meses. Os “ataques”, portanto, não são tão favoráveis ao SDC, tampouco à população prisional. Mesmo assim, acabam se impondo como idioma central na falta de outras estratégias e diante de situações críticas. E o SDC insistirá nessa estratégia caso não exista uma inversão nesse quadro de violações, que é a marca do sistema prisional brasileiro e potiguar. Importa, portanto, que nós, como sociedade e governo, entendamos que uma prisão mais digna pacifica a sociedade e enfraquece as facções. É nessa direção que precisamos caminhar, não na contrária.
[1] Digno de nota é que o MNCT já esteve pelo menos três vezes no estado após o Massacre de Alcaçuz, realizando inspeções e publicando relatórios com recomendações essenciais para a coibição de práticas de tortura.